O dia amanheceu barulhento. Antes mesmo de abrir os olhos para ver a luz que passava entre as frestas da janela, pude ouvir o som agitado de pessoas andando apressadas lá fora e falando baixo como se não quisessem me acordar, contudo, falhando miseravelmente.

Sentei devagar um pouco tonta, dominada pelo sono que ainda pesava em meu corpo, mas preferi não levantar de vez. Fiquei ali, na beirada da cama, tentando decifrar a agitação que parecia estar movimentando tudo o que cercava meu quarto.

“Que dia é hoje mesmo?” Não sabia dizer. Fiquei repassando os acontecimentos do dia anterior como um detetive que busca desvendar um mistério e me lembrei de uma cena feliz, com família reunida, comida boa e crianças brincando no quintal. O sol iluminava e aquecia esse encontro onde as meninas pulavam na piscina buscando os brinquedos que eu jogava para que elas mergulhassem e me trouxessem de volta, uma vez atrás da outra, incansavelmente.

“Joga de novo, vovó”, “agora é minha vez, você pegou a última”, “joga um menor, esse tá fácil”. Foi preciso inventar novos jogos, mais interessantes, para interromper a maratona de “caça ao brinquedo na água” e ir aos poucos acalmando a turminha que, depois de um banho quente, um desenho na tv e um balde de pipoca esvaziado, acabaram adormecendo no sofá. Lembrei de sentir o cheirinho do cabelo delas quando as pegava no colo e levava para a cama onde dormiam profundamente pelo resto da noite. E eu descansava feliz, dormia bem quando elas estavam por perto.

As vozes lá fora agora estavam menos contidas e eu podia ouvir alguns diálogos, embora não conseguisse identificar exatamente sobre o que conversavam, ou mesmo, quem estava falando.  Tentei me levantar e conferir o que estava acontecendo, procurei meu celular para saber as horas e, depois meus óculos para enxergá-las, mas não encontrei nenhum dos dois.

Foi quando vi, ao lado da cama, uma poltrona confortável sobre a qual estava esticado um lindo vestido de festa, protegido dentro de uma capa de plástico transparente que não escondia o meu tom de azul preferido e as pequenas pedras brilhantes espalhadas pelo tecido na medida certa para deixar o vestido discreto e elegante. No chão, em frente à poltrona, repousava um par de sapatos num tom mais escuro de azul combinando com o vestido e com saltos baixos que me pareceram extremamente confortáveis.

Mais atenta agora, percebi que o ambiente ao meu redor era festivo, e que as vozes agitadas que ouvia fora do meu quarto provavelmente estariam a serviço de algum evento importante. Fechei os olhos novamente para aguçar meus ouvidos e pude escutar fragmentos de conversas que envolviam o lugar exato para colocar os arranjos de flores, a toalha de renda branca sobre a qual o bolo e os doces seriam dispostos e as luzes e ramos que se entrelaçariam com o pergolado no quintal.

Enquanto apertava meus olhos tentando concentrar todos os meus sentidos em decifrar os sons de festa que aos poucos iam invadindo minha mente, ouvi a porta do quarto se abrindo e a doce voz da minha amada netinha me chamando suavemente: “oi, vovó!”.

Além de doce e suave, sua voz teve o poder de me fazer despertar por completo e, subitamente, me lembrei que dia era aquele. Bem, para ser sincera, o dia exatamente não consegui me lembrar, mas o ano era 2041 e isso certamente explicava o peso em minhas pernas e a dificuldade para sair da cama. Lembrei também que estava despertando do sono da tarde, um cochilo gostoso depois de um farto almoço em família. Na verdade, essa dormidinha vespertina sempre me deixou um pouco confusa…

Mas ao ouvir aquela voz amorosa me convidando para sair do quarto, somada às conversas lá de fora e à roupa que esperava por mim ali ao meu lado, tudo ficou muito claro para mim. Minha neta me chamava agora não mais para ir brincar na piscina, colocar um filme ou fazer pipoca. Abri meus olhos e vi uma linda mulher com seus 20 e poucos anos, maravilhosamente maquiada e penteada, me chamando para ir com ela ao encontro da realização de um sonho.

E, desta vez, foi ela quem me ajudou, retribuindo todo o amor que recebeu desde a sua infância. Me estendeu a mão, me ajudou com a toalete e me encaminhou até a pessoa que também me maquiaria e ajudaria a me vestir. Em poucas horas eu estava pronta e, com muita emoção, me vi diante do espelho: uma senhora de 80 anos devidamente paramentada para viver uma das maiores emoções de sua vida: o casamento de sua neta ali naquele mesmo quintal, ao lado da piscina da caça ao brinquedo.

Foi então que eu percebi que o “dia anterior” repassado em minha mente foi mesmo um ontem, porque a vida é assim: passa voando, uma brisa, um piscar de olhos. Ontem ela brincava no quintal e precisava de mim para levá-la para a cama. Hoje ela se casa no quintal da vovó e me ajuda a sair da cama. O nome disso é amor.