Este texto não é um exercício proposto na caixinha, mas faz referência a uma situação de enfermidade pela qual eu passei dias atrás. Nem tudo se refere a mim especificamente, mas tem muito do que já vi e vivi na sociedade em geral, onde o trabalho toma mais tempo do que deveria e suga a energia de quem está desatento. É uma crônica da dor da vida contemporânea: da minha e, talvez, da sua.
Crônica de uma dor crônica
Ela geralmente não tinha tempo para nada. Sempre ocupada, cheia de e-mails para responder, reuniões, aulas para preparar e para dar, coisas para ler e coisas para escrever. Café era o seu combustível, sua melhor desculpa para sair do laboratório por alguns segundos e andar uns poucos metros para buscar mais uma xícara enquanto pensava: “mais uns 3 e a caminhada tá paga”. Às vezes escolhia as escadas ao invés do elevador e, nesses casos, se achava quase uma maratonista.
Dormia mal. Não eram poucas as vezes em que acordava de madrugada num pulo, lembrando de um prazo qualquer para entregar um relatório disso ou daquilo. Já deixava seu notebook ao lado da cama facilitando a checagem e, se o pressentimento fosse confirmado, o resto da noite seria usado para trabalhar naquilo.
Ao lado da cama ficava também sua caixinha de remédios diários que incluía: ansiolíticos, analgésicos para diferentes finalidades, algumas vitaminas, colágeno e, claro, mais um comprimido que garantisse que seu estômago aguentaria tudo isso. Mas, estava ali também o melhor de todos, o seu preferido, o queridinho das noites dormidas: o delicioso calmante para dormir. Não podia mais viver sem ele.
Aquela “baguinha” era a responsável por ela ainda dar conta da louca agenda de cada dia. Só ela a fazia desligar quase instantaneamente, literalmente hipnotizada e pronta para cair em sono profundo por algumas horas. Benditas horas em que se transformava num tipo de Alice em seu próprio país das maravilhas, onde parecia flutuar, assim como as coisas ao seu redor. Coisas essas, aliás, que ela encontrava em lugares improváveis no dia seguinte sem ter a mínima ideia de como tinham ido parar ali…
Em uma manhã peculiar, apesar de o efeito daquele incrível remedinho já ter passado há um bom tempo, ela se flagrou olhando pela janela, distraída como se ainda fosse Alice, vendo os carros passarem com pressa no asfalto enquanto as folhas das árvores se moviam lentamente com a brisa tranquila de outono pelo céu acinzentado. Chegou a pensar na ironia desse encontro entre correria e calmaria nessa típica cena cotidiana, mas foi interrompida em seus pensamentos por um incômodo raiozinho de dor que atravessou seu abdômen. Foi inédito, rápido e firme, assustando por sua inesperada existência e aliviando, ao mesmo tempo, por tamanha rapidez.
Olhou para o celular e checou a hora, arrependida por ter gasto aqueles preciosos minutos na janela: “droga, não vai dar tempo de tomar um café decente. Justo hoje que pretendia usar o horário do almoço para terminar aquele artigo! Vou ter que almoçar…”
Juntou sua pesada pasta de laptop, pendurou a bolsa no ombro e seguiu a passos rápidos até o elevador enquanto comia uma maçã e mandava uma mensagem pelo whatsapp – “atrasada, mas a caminho”. E apagou ali mesmo, dentro do elevador que descia para o térreo.
Depois disso, o que ela sentiu foi todo o peso do silêncio e da escuridão de eternos minutos. Alice novamente, mas não de um jeito bom. Era agora uma Alice que corria sem sair do lugar, que abria a boca sem voz para gritar por uma ajuda que não existia, com olhos que giravam no escuro procurando por uma luz que não havia.
Até que, de repente, sentiu o corpo chacoalhar como se voasse sem controle e ouviu um barulho estridente como o de um bando de aves inespecíficas que gritavam sem parar. Quando, enfim, conseguiu abrir os olhos, viu-se dentro de uma ambulância que costurava os carros na mesma avenida que via de sua janela.
Os dias que se seguiram foram de muitos exames de laboratório e imagem, litros e mais litros de soro, analgésicos, antibióticos, fome, papinhas sem gosto, náuseas e noites insones cheias de pensamentos confusos, interrompidos a cada duas ou três horas pela chegada dos medicamentos das madrugadas. Novamente Alice, que agora fazia perguntas nas encruzilhadas que surgiram em sua mente, perguntas sem resposta, já que não sabia onde queria chegar. Sobravam preocupações quanto ao futuro, toneladas de medo e incertezas surgidas por causa das inesperadas dores. Como andavam as coisas na universidade? Perderia muitos prazos e reuniões importantes… E suas aulas? Seus orientandos e orientandas? Sua pesquisa? Que transtorno…
Mas o passado também povoava seus pensamentos intranquilos e isso era o que mais a torturava. “O que foi que eu fiz com a minha vida? Como me deixei envolver num ritmo alucinante de atividades a ponto de esquecer de mim?” Lembrou que, há anos, seu trabalho ultrapassava em muito as horas para as quais havia sido contratada a atuar. Mesmo quando estava fora da faculdade, as paredes do seu laboratório pareciam se estender definitivamente ao seu redor por onde quer que fosse, pois, sempre havia uma mensagem importante, um email que tinha que ser respondido, um telefonema urgente para atender e, dessa forma, trabalhava em um disfarçado regime de escravidão. Parecia agora uma Alice pequena, minúscula diante dos desafios da vida, afogando-se em suas próprias lágrimas.
Num misto de culpa pelo passado e insegurança quanto ao futuro e, em meio a todo esse turbilhão de pensamentos, lembrou-se daqueles instantes na janela naquele dia em que a dor física se manifestou. A lembrança daquele momento, no contexto em que se encontrava, assumiu a conotação muito mais de um lampejo, uma visão de um futuro melhor no qual a contemplação deixaria de ser um arrependimento para se transformar num estilo de vida que sustenta e impulsiona todo o resto.
Ela, então, olhou para o soro pingando devagar e passando pela veia de borracha até entrar em suas veias de sangue e decidiu que era hora de mudar de atitude. O plano inicial era concentrar todos os seus esforços físicos, mentais e espirituais para trazer a cura que precisava naquele momento e sair do hospital. Fora de lá, sabia que teria que lidar para sempre com o que lhe causava a dor física e que, para que ela não voltasse com a mesma força, sua alma e coração também precisavam estar saudáveis.
Faria uma profunda revisão em sua agenda, limitando com firmeza seu horário de trabalho. O susto lhe fez, finalmente, acordar para o fato de que a sua mão de obra é substituível mas que sua vida não é. Ajustes precisariam ser feitos e, para isso, teria que ignorar a falsa culpa de trabalhar apenas as horas contratadas e aprender truques para continuar produtiva, administrando sua energia. Faria refeições saudáveis nos horários apropriados, aprenderia a dizer “não” para evitar abusos e, principalmente, contemplaria mais.
Incluiria momentos de descanso e lazer, mas também prestaria mais atenção ao sol aquecendo seu rosto no carro a caminho do trabalho, ao canto dos pássaros pela manhã e, definitivamente, teria um pet para acariciar e cuidar.
Entendeu, também, que a dor crônica da alma precede a do corpo e que são poucas as pessoas que se dão conta disso, embora sejam tantas em sofrimento. Devagar, levantou-se carregando o soro e foi até a janela, de onde viu outra avenida com carros em movimento que também tinham como pano de fundo algumas árvores que balançavam dançando com o vento. Voltou para o leito, fechou os olhos e dormiu tranquila sem a ajuda daquele comprimidinho, outrora imprescindível – o primeiro passo no processo de desapego que tinha pela frente. Alice estava pronta para ir para casa.
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