Post de estréia do blog, meu primeiro exercício de criatividade:

Escreva uma história em que cada frase comece com uma letra do alfabeto, na sequência certa, de A a Z.

 

Ah, eu sabia!”, disse a moça já cansada de tantas decepções com o que, por aí, as pessoas chamam de amor.

Bem que minha intuição me avisou, eu devia ter escutado minha voz interior e entendido os sinais logo de cara…” As lembranças de decepções passadas voltaram todas de uma vez e caíram como um raio sobre a sua cabeça, eletrizando cada sentido do seu corpo de sua alma.

Como foi que você entrou nessa outra vez, sua idiota? Não aprendeu nada com a vida até agora?” Chocada e incrédula por sua ingenuidade, culpava única e exclusivamente a si própria por se encontrar, novamente, nesse estado de tristeza e solidão. Decepcionada sim e, com certeza consigo mesma.

 

Decepção consigo mesma explicava muita coisa mas não explicava tudo. Simplesmente não era possível que só ela estivesse errada nessa história. Certamente essa decepção tinha outras origens e ela estava disposta a identificá-las uma a uma. Decepcionada com o que mais? Com quem mais? Os homens? Com a humanidade? Com a vida? Com o amor, se é que ele existe mesmo?

 

Era muito difícil distinguir o lugar certo de onde vinha mais essa decepção e ficou complicado decidir onde exatamente deveria depositar sua raiva nessa hora. Difícil também definir os sentimentos que ficaram ainda mais embaralhados. As emoções indefinidas a cercavam por todos os lados, subiam e desciam de sua cabeça para o seu coração e, de lá, direto para o seu estômago, de onde subiam para a boca como um jato de vômito inevitável. Por isso, escolheu o caminho mais fácil: direcionar esse imbróglio como uma seta inflamada de culpa na direção de todas as pessoas que a magoaram até então. Decidida como uma guerreira medieval, entesou o arco e lançou várias flechas na intenção de ferir mortalmente cada uma dessas pessoas (ao menos dentro de si).

 

Flecha número 1: Essa vai direto para ele, esse homem falso e mentiroso que a iludiu e a enredou com seus encantos até que, enfim, ela se tornasse uma presa fácil, entregue e disponível oferecendo seu pescoço  para que ele enterrasse suas presas e sugasse todo o seu sangue, suas energias. Sim, ele era o primeiro culpado a ser flechado. Esse vampiro maldito sugou dela o melhor que possuía e se alimentou de sua força interior até esvaziá-la e deixá-la caída e só, inerte no chão frio e sujo desse relacionamento. Sim, ele deveria ser o primeiro a morrer, “esse mentiroso, traidor!” Mas, enquanto mirava a flecha no coração do traidor, voltavam como certeiros bumerangues as lembranças de tantos sinais de desinteresse e desamor que esse pulha nunca fez questão de esconder: o passeio que ela marcou e ele não foi (desculpa amor, comi algo que me fez mal e não saí do banheiro a noite toda), nem se dignou a avisar (puxa, foi mal, esqueci de trazer o celular pro banheiro e estava tão fraco que acabei dormindo até agora), e só deu desculpas esfarrapadas no dia seguinte, depois da ida surpresa na casa dele logo cedo antes do trabalho, quando ele apressadamente a levou até o portão jurando mil amores, pedindo mil perdões, prometendo compensá-la depois e a impedindo de entrar “porque a casa estava uma bagunça, sabe como é, noite difícil…”. Passou o resto do dia enviando mensagens fofas pelo whatsapp e assim, tudo certo. Devidamente compensada.

 

Galhuda, isso é o que você é, menina, uma corna! Nasceu pra ser, conforme-se com isso! Nunca vai encontrar o amor verdadeiro, o parceiro ideal, fiel e companheiro. A felicidade te odeia. Acostume-se a ser triste, amarga e só, muito só e rodeada de gatos na sua velhi…” De repente se viu em frente a um espelho mental e enxergou a imagem que já era uma velha conhecida sua: a ‘guerreira’ estava entesando o arco ao contrário e apontando a seta para si própria, para o seu próprio coração. Pronto! Chegava ao lugar que era seu destino mais certo: o lugar da culpa que, claro, era sempre dela. Não era a primeira vez (e talvez não fosse a última) em que atribuía a si própria os fracassos de suas relações amorosas: se envolvia rápido demais (muito carente), escolhia os mais podres que podia (não merecia nada melhor), entrava de cabeça até sufocar a si mesma e ao cara (o medo de estar só a obrigava a agir assim, loucamente). Mas, chega. Não desta vez! “Pare já com isso, garota. Você não é perfeita, mas foi ele quem traiu. Não vê que a culpa não foi (toda) sua? Ele tornou a relação imunda com suas traições. Não foi você!

 

Havia algo de novo desta vez, uma certa consciência da necessidade de apontar o fracasso para outras direções. E a moça gostou dessa sensação, parecia diferente das tantas outras vezes em que a culpa crescia a ponto de mastigá-la e engulí-la até que se transformasse no excremento que ela sempre pensava que era.  Resolveu mudar de estratégia: não atacaria apenas o meliante namorado traidor, mas atiraria flechas menores, porém, letais ao relacionamento com ele como um todo. E foi assim que partiu para as agressões de maneira mais genérica a essa infeliz relação recém-terminada. Haveria de aprender muitas lições com isso.

 

“Imunda. Indigna. Profana. Destruidora. Maldita”. Nada prestou nesse namoro, desde o início.” Pensando bem, ela se lembrou que a relação estava fadada ao fracasso desde que ficaram juntos pela primeira vez, quando foi de carona com ele para uma festa na casa de praia de uma amiga em comum. Foi divertido, beberam muito e acabaram dormindo juntos. Passou tão mal de enxaqueca e ressaca na manhã do dia seguinte que não se lembra de muita coisa além da dor. Deveria ter imaginado que o batismo de vômito que protagonizou no carro dele no caminho de volta pra casa não podia mesmo ser um sinal de prosperidade… “Relação dos infernos, começou mal, só podia terminar mal!” Lição número um: Nada de bebidas no primeiro encontro. Voltou aos xingamentos, mas quanto mais nomes feios ela atribuía à relação, mais sozinha e triste ficava. Isso também não estava ajudando… As lembranças do primeiro encontro receberam novas luzes e só agora ela pôde enxergar com clareza o que via enquanto se contorcia de enjôo e dor no banco de trás do carro no retorno para casa: Conversas alegres que não terminavam nunca com a amiga que também estava de carona. Riam muito, cantavam juntos a música do rádio, contavam coisas sobre si mesmos e se tocavam delicadamente… Sim, ele passava a mão nos cabelos dela e acariciava sua perna enquanto dirigia. Essa lembrança maldita não ficou só na mente, mas atingiu certeira o seu estômago explodindo em novo jato amargo que precisou ser expelido vocês sabem como. A confusão emocional adquiria novos contornos agora: tomava formas de um outro monstrinho que ela já conhecia: a auto-piedade. Como era possível terminar assim a vida de uma pessoa que se entregou de corpo e alma, com toda a sinceridade do mundo, ao que achou que seria o amor da sua vida? Começou então a se lembrar do quanto ela se esforçou para fazer dar certo, para que ele a amasse apaixonadamente. Lembrou dos jantares românticos, das lingeries, dos presentes surpreendentes, das mensagens carinhosas, do romance, das carícias… Não foi traída apenas por ele, mas também por sua amiga confidente. Estava cercada de pessoas más, que não respeitavam sua amizade e amor sinceros. Que horror, que tristeza sem fim…

 

Jamais pudera imaginar um final tão cruel para essa história de amor que ela estava construindo. Ao mesmo tempo parecia tão divina e tão mundana, tinha em sua essência uma mistura irresistível de fugacidade e eternidade… como uma relação que fora tão curta em sua dimensão temporal poderia fincar raízes tão eternas em sua alma? Ela não estava louca, não entrou sozinha nessa relação. Ela fez tudo certo, tudo como deveria ser. O vilão charmoso que a envenenou fazia isso com muitas outras garotas e, só agora ela conseguiu entender que a verdadeira verdade estava no fato dela ser uma ingênua inocente que acreditava no amor e na amizade das pessoas e que fora traída não apenas por ele, mas também por ela: a falsa amiga que pela frente era toda companheira e confidente e, pelas suas costas, a amante do seu namorado. Criatura perigosa. Ela sim era a cobra venenosa que se infiltrou em seu relacionamento. Sim, era ela, não ele, quem deveria receber a flecha certeira que acabaria com a sua existência e levaria junto com ela toda a dor, a desconfiança e incredulidade no amor. Sim, acabar com ela seria a solução. Foi ela quem o cegou, o enfeitiçou, o encantou. O alvo mudou de direção, ela deve morrer.

 

“Loira azeda, Barbie do mal, bruxa insensível. Falsa, hipócrita, egoísta, isso é o que ela é. Decerto ficaram juntos assim que me deixaram em casa naquele dia”. Foi a conclusão mais óbvia a que pôde chegar naquele momento. “Pessoa odiosa, como ela foi capaz de fazer isso comigo? Ela sabia que eu estava muito na dele, falamos sobre isso tantas vezes enquanto planejávamos nossa viagem”. Ela era mesmo uma cretina, certamente a pior amiga que alguém poderia ter. Foi ela que minou minha relação com ele! Num impulso quase instintivo, correu até aquela rede social onde todos estão para ali investigar o perfil dessa perversa e estúpida “amiga”. Partiu em busca de sinais de sua traição e atravessou sua linha do tempo atrás de pistas que pudessem se transformar em evidências para, enfim, torná-la a suspeita principal do crime que matou o seu namoro. Retrocedeu nos dias, semanas, meses… nem sinal de qualquer interação com ele. Nem amigos eram ali. Seus dotes como detetives não eram os melhores, mas insistiu neles investigando outros perfis: outras amigas em comum, a dona da casa de praia, talvez, já que era nossa amiga em comum. E, depois de invadir milhares de lugares, pessoas e hashtags sentiu-se cansada e vazia. Ficou se perguntando o por quê de não ter entrado no perfil dele, o traidor verdadeiro da história e concluiu que a verdade verdadeira mesmo era aquela que ela não queria encarar: teria sido bem mais fácil encontrar sinais, evidências e provas de que ele era quem não prestava no final das contas. Mais um a quem entregara o seu coração.

 

Masoquismo: “Desvio mental que consiste em sentir prazer com a dor”. Masoquista: “aquele que sente prazer com a dor”. Encontrou essa definição naquele dicionário velho que estava na estante, mas logo desistiu de usar essas palavras para se auto definir. Não gostava da dor, não tinha nenhum prazer nela. Mas volta e meia andava por caminhos que a levavam até lá. “Que labirinto insuportável. Não é possível que esse seja o meu destino!” A simples ideia de terminar seus dias como uma idosa isolada do mundo num quarto sujo e na companhia de 44 gatos serviu como uma dose de cafeína misturada com estimulantes de toda espécie injetada direto na veia e a fez saltar de um pulo com uma nova e empolgante sensação. “Essa não sou eu! Mazoquista o ******!” Entrou no banheiro, desta vez, não mais para expulsar líquidos pela boca e, sim, para tomar um banho restaurador. Por um longo período de tempo deixou cair sobre ela fortes jatos desse líquido quente capaz de lavar o corpo e a alma e se permitiu também deixar saírem dos seus olhos lágrimas mornas que fluíam sem fazer força e sem nenhuma obrigação: apenas fluíam de um jeito inédito e inesperadamente tranquilo. Ah, quanto prazer nesse ritual de lavagem…  A espuma branca que descia de seus cabelos se juntava às lágrimas em seu rosto e à água quente que saía do chuveiro, tornando-se em uma nuvem molhada e mágica que escorria por todo o seu corpo exercendo seu incrível poder de fazer sumir pelo ralo toda aquela negatividade que há pouco deixava feias manchas em sua pele e em sua alma.

 

Num gesto consciente e gentil, desligou o chuveiro e respirou aliviada. Abriu os olhos, seus novos olhos, com os quais agora pretendia ver a vida. Esticou lentamente o braço direito e alcançou a toalha com a qual se cobriu e, continuando essa espécie de ritual de auto-conhecimento, secou uma por uma as gotas do seu banho de renovação. Passou pelo espelho e se viu ainda nua e, pela primeira vez, contemplou o seu ainda jovem corpo. Com essa atitude de contemplação, se achou linda, perfeita, atraente e gostosa. Não pôde evitar de rir quando se lembrou que, há menos de 24 horas atrás, se achava gorda, desengonçada e feia.  Conseguiu listar os pontos fortes do seu corpo e foi até o guarda roupa. Escolheu uma blusa que valorizasse o seu decote, pegou aquela calça que ficava num canto esperando que ela emagrecesse “aqueles dois quilos”, mas que hoje entendeu que, na real, era a ideal para delinear suas pernas. Pegou seu sapato mais bonito e confortável (sim, conforto é uma séria prioridade a partir de agora), realçou a beleza do seu rosto com uma maquiagem que refletisse a pureza da sua alma mas que também mostrasse sua força: batom vermelho era indispensável. Voltou ao espelho e o que viu agora foi uma linda mulher renascida como a fênix e digna de amar e ser amada.

 

Olhou bem em seus próprios olhos, corrigiu sua postura e disse em alta voz para si mesma: “Você está vendo essa pessoa linda nesse espelho? Ela é você, a você de verdade. A você forte que fica negligenciada de vez em quando, que é empurrada pra baixo por sentimentos de derrota e que fica encolhida por um tempo, mas que sempre volta a subir. E volta mais poderosa e linda. Essa é você! Aquela que te chama de idiota, de burra, que diz que você faz tudo errado e que não merece o amor – aquela não é você de verdade. Ela é parte de você, mas não é a melhor parte.  Também tem aquela que te faz pensar que a tristeza e a solidão são as marcas do seu destino, essa aí também não é a você dominante. Ela aparece de vez em quando e quer tomar o lugar do seu verdadeiro ser, mas não pode e nem vai. Ah, e sabe aquela outra que faz você se sentir a coitadinha sofredora, isenta de todas as culpas e vítima dos outros e das circunstâncias? Cuidado com ela, mas saiba que ela também não pode com a verdadeira você.”

 

Passou um bom tempo nesse necessário diálogo consigo mesma. Falou tanto e com tanto vigor que precisou de água mais uma vez: aquela filtrada e na temperatura certa para matar a sede de vida que estava experimentando. Alma e corpo lavados, boca e garganta molhadas: sentiu que estava pronta. Estava feliz e muito orgulhosa de si mesma, por sua capacidade de reerguer-se tão bem e tão rápido depois de mais uma decepção amorosa. Gostaria de ter gravado seu discurso, nunca fôra tão eloquente em toda a sua vida. Se foi capaz de convencer a si mesma a mulher forte e poderosa que ela é depois de ver estraçalhado o seu coração, quebrado em mil pedaços e jogado na sarjeta, seria capaz de ajudar outras mulheres a fazer o mesmo. Pensou que poderia ser útil nesse tempo de relações tão líquidas e frágeis… Teve a ideia de escrever um blog, criar um perfil nas redes sociais que despertasse o amor próprio das mulheres e a sororidade entre elas. Achou que seria legal escrever um livro, criar um canal de vídeos. Sim! Era tudo isso o que ela deveria fazer, espalhar pro mundo suas descobertas.

 

Quanto mais ela pensava nisso, mais cheia de energia ficava. Tratou de ligar o notebook e anotar suas ideias. Nossa, ela estava cheia delas! Começou a usar o teclado como uma metralhadora disparando letras, palavras e frases uma após a outra, sem pontuação, sem trégua, sem dó. Exorcizou na tela sentimentos, pensamentos e emoções que estavam guardadas desde sua infância, mas sem ordem cronológica, sem organização alguma e, muitas delas, totalmente sem sentido. Era simplesmente incrível o tanto de coisas que estavam guardadas dentro de si. De quantos fantasmas que ela nem imaginava que assombravam sua vida ela se livrou naquele exercício. Quantos medos injustificáveis puderam ser justificados naquele texto. Ela foi escrevendo por horas e horas sem nenhum esforço, sem nenhuma técnica, sem nem mesmo nenhuma pausa, nenhum cansaço. Tanto que, a impressão que sentia, é que em um determinado momento não era mais ela quem digitava loucamente tecla por tecla. A partir de um determinado instante as palavras saíam por conta própria dos seus dedos, sem passar por nenhum filtro, por qualquer tipo de elaboração ou planejamento. Elas iam sozinhas de dentro da moça para dentro da máquina. Com força e com pressa.

 

Rapidamente um longo texto se formou magicamente sozinho: em sua frente ela via páginas e páginas de um texto desconfigurado, desorganizado e complexo cheio de verdade e de potência capaz de explodir o mundo velho e dar vida a um novo mundo. “Explodir o mundo velho, criar um mundo novo”: foi exatamente o que ela pensou por último e, nessa hora, caiu exausta no encosto da cadeira onde esteve digitando aparentemente por uma década.  Naquele momento ela sentiu uma dor que se espalhava pelo seu pescoço, coluna, braços e mãos. Era evidente que se sentiria assim depois de tanto tempo torturando um teclado. Mas era “uma dor diferente, inédita, forte e potente como àquela de dar à luz”, pensou ela mesmo nunca tendo parido um filho sequer. Mas ficou claro como o dia que aquele momento catártico representava exatamente isso: ela acabara de parir um mundo novo que era só dela. Acabara de   trazer uma nova vida – a dela mesma – para um velho mundo.

 

Sentiu-se, por alguns momentos, tão indefesa diante dessa nova vida que saiu de dentro dela quanto um bebê recém-nascido sai de dentro da sua mãe biológica. Mas logo se lembrou que os bebês são gerados por outras pessoas e obrigados a vir ao mundo sem seu consentimento e, uau, isso é mesmo assustador. Só que não foi assim com ela: a vida que trouxe à luz por meio dessas palavras foi gerada por ela mesma, embora tivesse a participação de outras personagens do mundo velho que conheceu antes desse dia. Foram suas experiências, suas lembranças, seus medos e sua coragem, suas vitórias e suas derrotas… O que nasceu foi uma soma de tudo o que ela conhecia, sabia e havia de alguma forma vivenciado. Essa moça recém-nascida era feita disso tudo e, inclusive, das várias outras ‘moças’ que a compunham como pessoa e que ela cultivava dentro de si instintivamente. Ficou claro de quantas pessoas, frases, imagens, cheiros e sabores, coisas concretas e imaginadas alguém pode ser formado, e ela entendia agora que aquilo tudo faz parte de quem ela é, mas que isoladamente, nada daquilo a definia. Sentiu, finalmente, que não dependia de ninguém para sobreviver e para ser forte. Ficou tão impressionada com o poder desse insight que chegou a sentir gratidão pelo miserável traidor… Percebeu que a moça que nasceu depois desse processo dolorido não depende mais de “mamães’, “papais”, “babás”, “professores”, ou coisas do tipo para crescer, se alimentar, andar e viver.

 

Teve a certeza absoluta de que essa fase de dependência ou co-dependência era coisa do passado e que, definitivamente, nada do que experimentou em seus relacionamentos ‘amorosos’ anteriores poderia ser chamado de amor. Aquela explosão de palavras e sentimentos amontoados naquelas páginas parecia a ser a revelação mais próxima do amor, mais do que tudo o que já tinha experimentado antes. Depois de retomar o fôlego, decidiu passar os olhos no texto buscando, quem sabe, um entendimento mais racional do que toda aquela história significava. Assim como saíram de seus dedos espontaneamente para a tela, as palavras agora pulavam para os seus olhos com a mesma força e naturalidade. Em meio àquelas linhas cheias de erros de digitação e de ortografia, uma linha comum começou a ser traçada e a fazer muito sentido. Encontrou ali todas as pessoas realmente importantes na sua vida: sua família, seus amigos, colegas de trabalho, conhecidos. Gente de quem ela gostava e gente de quem sentia ódio, gente que que lhe fez bem e gente que lhe fez mal, gente que a ajudou e que a atrapalhou. Gente que a fez sorrir e gente que a fez chorar. E lugares, muitos lugares conhecidos: casas, escolas, praias, ruas e cidades. Situações diferentes, confortáveis e desconfortáveis, felizes e tristes. Tanta coisa junta ali, tantas conexões e experiências…

 

Um universo inteiro despejado naquela máquina. O universo dela, que saiu descontroladamente de dentro daquela moça desencantada com o amor. Uma história mal escrita e ainda não terminada, que tinha começo mas ainda não tinha fim e da qual era impossível compreender cada detalhe ou mesmo traçar um rumo definido a partir dela. Muita coisa misturada formando um quadro complexo e muitas vezes confuso e dolorido mas que, olhando agora com esses novos olhos, a moça recém-nascida encontrou sentido e se sentiu disposta a continuar construindo essa história. Só que, a partir de agora, deixando fluir de dentro pra fora, recebendo graciosamente e filtrando atentamente cada presente que esse ‘mundo velho’ lhe oferecesse.

 

Vigorosamente, levantou-se da cadeira e começou a andar pela casa, em direção à porta da rua, decidida a viver sua nova história. Ao passar pelo espelho, levou um susto enorme que a fez parar e deixar cair a bolsa que estava segurando. Incrédula, foi se aproximando devagar e a imagem que viu à sua frente era exatamente a peça que faltava para dar sentido a tudo o que havia acontecido. Parou novamente em atitude de contemplação e, mais uma vez, ela estava lá: a mulher linda, forte, perfeita e gostosa. Algumas coisas, porém, estavam diferentes: em seus cabelos havia alguns fios em um tom acinzentado simplesmente adorável, seus olhos permaneciam vivos em seu rosto, mas agora brilhavam uma sabedoria que não existia naquele primeiro encontro consigo mesma ali, naquele mesmo espelho. A pele continuava macia, embora não tão firme e brilhante. Ali parada em frente ao espelho, ficou pensando na quantidade enorme de vezes em que precisou daqueles banhos restauradores onde a água se misturava às lágrimas e fazia sumir pelo ralo cada uma das manchas de tristeza e culpa que se acumulavam com frequência. Visualizou tantas vezes em que contemplou seu corpo nu diante do espelho e acompanhou cada mudança sem nunca deixar de identificar seus pontos fortes e de ressaltá-los na maneira com que se vestia. Compreendeu que sua própria vida era a tela na qual escrevia sua história da maneira mais honesta que podia, sem esconder sentimentos ou desejos, assumindo seus erros e aprendendo com eles. Por fim, viu no espelho uma vencedora: uma rainha que, inteligentemente, desfilou pelo tabuleiro de xadrez e ganhou a partida.

 

“Xeque-Mate”, disse em voz alta. Retocou o batom, deu aquela esticadinha no vestido, pegou a bolsa caída no chão e saiu com passos firmes e decididos. Pronta para viver novas experiências, aberta às surpresas que a vida pudesse trazer. Plena e poderosa, saiu de casa na melhor companhia possível: ela mesma.

 

Zeradas as expectativas que antes lhe faziam mal, vivia agora confiando no poder de seu julgamento e no acerto das escolhas que aprendeu a fazer. Tomava tranquilamente um cappuccino em sua confeitaria preferida, numa linda e fria tarde de sábado, quando a mesa estremeceu de leve e um zunido discreto chamou sua atenção. Pegou o celular e conferiu o “match” de um certo aplicativo. Com a mesma tranquilidade, checou as possibilidades e, com um leve sorriso no canto esquerdo de sua boca vermelha, deixou escapar em voz alta um pequeno comentário:

 

“Ah, eu sabia…”