Querida Elisa de 15 anos de idade,

O tempo é um conceito estranho, impreciso: ele passa voando mas também se arrasta. Às vezes escapa das mãos e, quando isso acontece, jamais pode ser recuperado mas, ainda assim, ele pode ser reconstruído e revivido na memória, nas palavras, nos registros.

Eu escrevo essa carta com a certeza de que você nunca poderá lê-la no seu tempo, nesse seu momento de vida tão jovem e tão distante do agora. Por outro lado, faço uso desse conceito impreciso que o tempo tem para acreditar que essa leitura existe em você desde sempre e que, por isso, lá no fundo da sua alma você já sabe tudo o que vou te contar aqui. Estava aí dentro da sua mente e do seu coração o tempo todo e eu, que hoje te escrevo, é que não sabia de nada…

Mas tenho tanto a dizer! Quantas coisas lindas você fez, quanto amor você viveu, quantas histórias escreveu! E que vida linda você tem hoje! Que mulher forte e corajosa você se tornou. Quantas conquistas…

Antes de qualquer outra coisa, quero que saiba que você tem uma família incrível. Você tem hoje um casamento bem sucedido (seja lá o que isso quer dizer) e, se chegou aos 35 anos de casada ao lado de um único homem e ainda com a mesma sede de viver esse único amor, isso deve ser um sinal de que as coisas deram certo para você. Foi com esse homem que você escolheu envelhecer e foi com o braço dele que você se transformou na mulher poderosa que é hoje. O amor, a amizade, a lealdade e o companheirismo dele foram muito importantes para você ser tudo o que você é e ter tudo o que você tem. Mas é bom que saiba que num casamento, assim como na vida, nem todos os dias são bons…

Você tem três filhos que ama de um jeito que não consegue explicar (e muitas vezes, demonstrar): um homem fantástico a quem você deu asas para voar e ele voou pra bem longe, atrás de conquistar seus sonhos. Se juntou a uma bela mulher e com ela deram vida a uma linda, doce e inteligente menina que te chama de nonna e deixou o seu mundo muito mais colorido e brilhante.  Hoje vivem lá do outro lado do Atlântico, longe demais dos teus braços e, com isso, fizeram você entender com sua alma o que a palavra saudade significa. Mas também te ensinaram que o amor desconhece distâncias e o coração permanece perto, aquecido e pulsante mesmo assim.

Você também tem duas filhas: uma morena incrível – a pessoa mais criativa, amorosa e sensível que você já conheceu ou conviveu; e uma loira linda e explosiva que veio num pequeno pacotinho de amor com tantos conteúdos diferentes que você vai passar o resto de sua vida tentando conhecer e entender.

A morena também ganhou asas desde pequena, mas preferia andar a voar até bem pouco tempo.  Arriscou vez ou outra um pequeno vôo baixo, seguro e de pouca distância e sempre voltava rapidamente para o ninho. Demorou um pouco para se jogar de uma altura maior mas, quando o fez, descobriu a força do vento e o poder que suas asas lhe davam e hoje alcança altitudes cada vez maiores. Ela também encontrou aquele que decidiu voar junto com ela e em breve farão viagens incríveis de onde poderão ver o mundo lá de cima e escolher o melhor lugar para construir seu próprio ninho.

A loira tem tantas vidas dentro dela que chega a ser difícil escolher uma para seguir. As emoções são tantas e tão fortes que a fizeram querer voar antes mesmo de aprender a andar! Sem que suas asas estivessem prontas, ela subiu o mais alto que podia e de lá se jogou tantas vezes que nem sei contar. Caiu bastante e se machucou muito dentro de um espaço de tempo tão pequeno que as feridas mal eram curadas e outras chegavam por cima. Ela resistiu em cada queda, sem desistir. Continuou subindo mais, se jogando mais, se curando e se ferindo até que, enfim, suas asas cresceram o suficiente e ela pôde também começar a voar. E hoje voa melhor, aprendeu a enfrentar as tempestades e a sobrevoar os desertos. Consegue entender o vento e escolher melhor os seus vôos. E não voa só: nesse caminho ela também gerou uma vida preciosa, a criança mais querida, esperta e carinhosa do mundo, que voa junto com ela e que pousa sempre aqui ao meu lado também, pra dizer que te ama e que você é a melhor avó do mundo.

Aos quinze anos, você já imaginava que um dia teria uma família assim e, olha só: você tem! Você seguiu o seu coração e chegou até aqui porque esse era o seu sonho. Mas você foi além, porque também tinha fé e essa fé te permitiu ver o que não se costuma enxergar com facilidade quando se é apenas uma adolescente. Foi sua fé em Deus, em você mesma e no amor, que tirou você de um possível futuro limitado, circunscrito dentro de tão poucas possibilidades que eram as que você tinha à sua frente nessa idade.

Você foi ousada: atirou uma flecha à sua frente, foi até lá buscar apenas para jogá-la mais uma vez, e outra, e depois outra até chegar em lugares onde você nem imaginava. E foi assim acreditando e avançando que construiu uma carreira bem sucedida (você é uma doutora aposentada!), realizou muitas viagens internacionais e comprou sua tão sonhada casa na praia. E, falando em viagens, obrigada por insistir com as aulas de inglês, foram muito úteis.

Você se perguntava se seria feliz no futuro e eu estou aqui para te dizer que sim, ao menos na maior parte do tempo. Talvez seja bom que eu lhe diga que o sofrimento, a dor, as decepções e o luto fizeram e ainda fazem parte da sua história. Você chorou muito, gritou, brigou e quase desistiu de tudo muitas e muitas vezes. Precisou e ainda precisa de terapia e por um tempo precisou também de uma ajudinha sintética para dormir. E eu te digo isso sem culpa: a vida às vezes acaba com aquela capacidade natural de cair no sono e não é vergonha nenhuma usar desse artifício para descansar da luta diária. Mas não se preocupe, você se tornou uma mulher sensata que conhece seus limites e soube dosar essa pílula. Ah, você descobriu o Tai-Chi e ele te ajuda muito a encontrar leveza e equilíbrio nessa loucura que é a vida adulta. Uma taça de vinho por dia também ajuda…

Já que estou falando sobre o mundo, quero te dizer que esta carta está sendo digitada no teclado de um notebook conectado a uma rede chamada internet. Isso era  futurista demais nos seus 15 anos de idade mas a tecnologia avançou de um jeito que você não seria capaz de sonhar. Ainda não temos carros voadores (ou skates) e ninguém mora na Lua ou em Marte. Mas nos comunicamos com áudio e vídeo de um jeito parecido com o do desenho dos Jetsons.

Eu queria te dar notícias melhores sobre o mundo de hoje mas não tenho muitas, não. Conseguimos nos livrar da ditadura militar no ano em que você se casou. Passamos por um processo de redemocratização política e avançamos em direitos trabalhistas, humanos e sociais. Foi lindo ver um governo de esquerda no poder por quase 20 anos… Mas, infelizmente (e é com muita dor no coração que escrevo isso), fomos arrastados de volta para trás numa onda gigantesca de extrema direita. Sofremos um duro golpe de estado que colocou os malditos liberais de volta ao poder. O Brasil elegeu um político inútil e estúpido, um ex-militar desumano que, com um discurso de ódio contra a esquerda e contra as minorias, atraiu o número suficiente de pessoas que também odiavam os esquerdistas, os negros, as mulheres livres e os pobres (você acredita que os evangélicos são linha de frente nesse absurdo?) e é esse o quadro infeliz que temos hoje: os ricos estão mais ricos e os pobres mais pobres outra vez.

O ano em que escrevo essas linhas é 2021 e, em meio a todo esse desastre social, ainda estamos enfrentando a pandemia de um vírus que está matando milhões de pessoas no mundo todo. Eu estou em casa, em isolamento social, há 14 longos meses e, quando preciso ir para a rua (em casos estritamente necessários), preciso usar máscara e higienizar as mãos com álcool em gel a todo momento.

Temos temos vacina mas não para todos ainda, e já somamos mais de 400 mil mortos no Brasil. São dias muito difíceis para a humanidade como um todo, mas deixa eu te falar que ser brasileiro nesse momento é bem mais complicado. O genocida que usa faixa verde e amarela lá em Brasília garante que é só uma gripezinha, diz que usar máscara é coisa de viado e que os que ficam em casa e respeitam o isolamento social são covardes. Muitos dos seus eleitores acham o mesmo e assim a pandemia segue descontrolada por aqui.

Por fim, queria que soubesse que sou grata por tudo. Eu poderia lhe mostrar os erros que cometeu (não foram poucos) para que eles fossem evitados, mas não vou fazer isso. Eles são parte da essência do que você é hoje, são necessários. Quero que saiba também que planejo viver muito ainda e que vou buscar a felicidade a cada amanhecer. Eu realmente acredito que há muita história pela frente e, quem sabe, te escrevo de novo daqui mais algum tempo com notícias diretamente da sua velhice que, espero, seja saudável e feliz!

 

Beijos,

Da Elisa de 59 anos de idade.