Exercício 13: Construa um diálogo entre o seu lado “luz” e o seu lado “sombra”, transformando-os em personagens com características marcantes.
Construa um diálogo entre o seu lado “luz” e o seu lado “sombra”, transformando-os em personagens com características marcantes.
L: Bom dia! Que bom acordar novamente! Estamos vivas e com saúde, temos tudo o que precisamos para que nosso dia seja incrível!
S: Claro, claro… Tirando o fato da noite mal dormida e de que não vamos poder sair de casa de novo nessa eterna pandemia, no mais será tudo incrííível mesmo…
L: Ah, vamos lá. Olhe ao seu redor e veja todo o conforto que te cerca, tudo conquistado com a força de um trabalho bem sucedido realizado ao longo da sua vida. Veja como você é abençoada, como suas boas escolhas lhe conferem agora um bom lugar pra viver. Desfrute, amiga!
S: É, eu sei. Não nego isso, mas confesso duas coisas: primeira – estou meio enjoada de “olhar ao meu redor” aqui dentro desse mesmo apartamento há mais de um ano. Segunda: quando estico um pouco esse olhar vejo ao redor tanta injustiça, tanta maldade, tanta idiotice, negacionismo e violência que minha vontade é entrar numa concha e só sair depois dessa idade das trevas que fizeram a gente voltar. E você me sugere desfrutar…
L: Ah, deixa isso pra lá. Vem aqui na sacada ver que dia lindo temos hoje: sol, vento suave, pessoas caminhando com seus pets… A vida ainda continua, valorize!
S: Estou vendo: pessoas sem máscara, comércio aberto com restrições pífias, ponto de ônibus lotado. Valorizar a vida é segurar o traseiro em casa e, se precisar sair, pelo menos que use máscara! Lindo dia… só que não.
L: Puxa, você é difícil de lidar hein? Quase tóxica, credo.
S: E você uma alienada do caramba. Fica tentando colocar florzinhas e coraçõezinhos em tudo o que vê e acontece. Onde fica essa dimensão maravilhosa em que você vive hein? Credo mesmo!
L: Ah, não vou deixar você estragar meu dia… Ei, olha só: tem stories novos das netinhas!!!
S: Opa, isso eu não resisto!
L e S (em coro): ownnnn meu deusio, que lindas, fofas, como eu amooooo! (florzinhas e coraçõezinhos nas postagens)
L (só em pensamento): Não falha nunca 😉
S (só em pensamento): Ainda bem que elas existem, que Deus as proteja desse mundo feio. :/
Exercícios 11 e 12: Rapidinhas do domingo
11. Invente um ditado aos moldes da sabedoria popular, a exemplo de “A fé remove montanhas” e “A esperança é a última que morre”.
Essa foi fácil, eu já tinha inventado há tempos… “Paz na mente, paz no ambiente”.
12. Escolha uma parte do seu corpo e a descreva, destacando emoções e características de personalidade. Por exemplo: “meu mindinho da mão direita é rebelde e individualista: sempre foi um pouco torto pra fora e nunca aparece juntinho dos outros nas fotos”.
Meu cabelo tem vida própria, ele decide como quer estar. Já cheguei achar que ele me odeia mas descobri que isso não é verdade. Ele é a mais evidente marca registrada que trago em meu corpo de que sou filha do meu pai, neta da minha avó e sobrinha das minhas tias e tios. Em todas as fotos de família lá está o ‘topete’ característico dos meus ancestrais. Eu e meu cabelo já brigamos muito nesses anos todos de convivência, mas ele sempre venceu cada luta. Por isso, com o tempo, aprendi a respeitá-lo. Entendi, por exemplo, que ele adora mudanças – já me deixou isso bem claro – eu o estico mas, se ele não quer estar liso, simplesmente encrespa. Eu jogo a franja pra esquerda mas ela se joga pra direita e pronto! Detesta a mesmice e ama mudar de comprimento, de cor e de penteado. Desde que aprendi a olhar para ele e perguntar “e aí, como será hoje?”, somos grandes amigos. Hoje ele se embranquece livremente e cada fio prateado serve pra me lembrar o quanto de vida já tivemos. Essa cor naturalmente adquirida também me avisa que o tempo que temos pela frente certamente será menor do que o que já passou e, por fim, também me adverte a fazer escolhas mais sábias nessa caminhada que ainda está por vir. Acredite: cuide bem do seu cabelo porque ele também cuida bem de você.
Exercício 10: Escreva uma carta para você mesma quando tinha 15 anos. Conte como você está, as novidades que surgiram no mundo, o que aconteceu com os seus sonhos e os planos da adolescência.
Querida Elisa de 15 anos de idade,
O tempo é um conceito estranho, impreciso: ele passa voando mas também se arrasta. Às vezes escapa das mãos e, quando isso acontece, jamais pode ser recuperado mas, ainda assim, ele pode ser reconstruído e revivido na memória, nas palavras, nos registros.
Eu escrevo essa carta com a certeza de que você nunca poderá lê-la no seu tempo, nesse seu momento de vida tão jovem e tão distante do agora. Por outro lado, faço uso desse conceito impreciso que o tempo tem para acreditar que essa leitura existe em você desde sempre e que, por isso, lá no fundo da sua alma você já sabe tudo o que vou te contar aqui. Estava aí dentro da sua mente e do seu coração o tempo todo e eu, que hoje te escrevo, é que não sabia de nada…
Mas tenho tanto a dizer! Quantas coisas lindas você fez, quanto amor você viveu, quantas histórias escreveu! E que vida linda você tem hoje! Que mulher forte e corajosa você se tornou. Quantas conquistas…
Antes de qualquer outra coisa, quero que saiba que você tem uma família incrível. Você tem hoje um casamento bem sucedido (seja lá o que isso quer dizer) e, se chegou aos 35 anos de casada ao lado de um único homem e ainda com a mesma sede de viver esse único amor, isso deve ser um sinal de que as coisas deram certo para você. Foi com esse homem que você escolheu envelhecer e foi com o braço dele que você se transformou na mulher poderosa que é hoje. O amor, a amizade, a lealdade e o companheirismo dele foram muito importantes para você ser tudo o que você é e ter tudo o que você tem. Mas é bom que saiba que num casamento, assim como na vida, nem todos os dias são bons…
Você tem três filhos que ama de um jeito que não consegue explicar (e muitas vezes, demonstrar): um homem fantástico a quem você deu asas para voar e ele voou pra bem longe, atrás de conquistar seus sonhos. Se juntou a uma bela mulher e com ela deram vida a uma linda, doce e inteligente menina que te chama de nonna e deixou o seu mundo muito mais colorido e brilhante. Hoje vivem lá do outro lado do Atlântico, longe demais dos teus braços e, com isso, fizeram você entender com sua alma o que a palavra saudade significa. Mas também te ensinaram que o amor desconhece distâncias e o coração permanece perto, aquecido e pulsante mesmo assim.
Você também tem duas filhas: uma morena incrível – a pessoa mais criativa, amorosa e sensível que você já conheceu ou conviveu; e uma loira linda e explosiva que veio num pequeno pacotinho de amor com tantos conteúdos diferentes que você vai passar o resto de sua vida tentando conhecer e entender.
A morena também ganhou asas desde pequena, mas preferia andar a voar até bem pouco tempo. Arriscou vez ou outra um pequeno vôo baixo, seguro e de pouca distância e sempre voltava rapidamente para o ninho. Demorou um pouco para se jogar de uma altura maior mas, quando o fez, descobriu a força do vento e o poder que suas asas lhe davam e hoje alcança altitudes cada vez maiores. Ela também encontrou aquele que decidiu voar junto com ela e em breve farão viagens incríveis de onde poderão ver o mundo lá de cima e escolher o melhor lugar para construir seu próprio ninho.
A loira tem tantas vidas dentro dela que chega a ser difícil escolher uma para seguir. As emoções são tantas e tão fortes que a fizeram querer voar antes mesmo de aprender a andar! Sem que suas asas estivessem prontas, ela subiu o mais alto que podia e de lá se jogou tantas vezes que nem sei contar. Caiu bastante e se machucou muito dentro de um espaço de tempo tão pequeno que as feridas mal eram curadas e outras chegavam por cima. Ela resistiu em cada queda, sem desistir. Continuou subindo mais, se jogando mais, se curando e se ferindo até que, enfim, suas asas cresceram o suficiente e ela pôde também começar a voar. E hoje voa melhor, aprendeu a enfrentar as tempestades e a sobrevoar os desertos. Consegue entender o vento e escolher melhor os seus vôos. E não voa só: nesse caminho ela também gerou uma vida preciosa, a criança mais querida, esperta e carinhosa do mundo, que voa junto com ela e que pousa sempre aqui ao meu lado também, pra dizer que te ama e que você é a melhor avó do mundo.
Aos quinze anos, você já imaginava que um dia teria uma família assim e, olha só: você tem! Você seguiu o seu coração e chegou até aqui porque esse era o seu sonho. Mas você foi além, porque também tinha fé e essa fé te permitiu ver o que não se costuma enxergar com facilidade quando se é apenas uma adolescente. Foi sua fé em Deus, em você mesma e no amor, que tirou você de um possível futuro limitado, circunscrito dentro de tão poucas possibilidades que eram as que você tinha à sua frente nessa idade.
Você foi ousada: atirou uma flecha à sua frente, foi até lá buscar apenas para jogá-la mais uma vez, e outra, e depois outra até chegar em lugares onde você nem imaginava. E foi assim acreditando e avançando que construiu uma carreira bem sucedida (você é uma doutora aposentada!), realizou muitas viagens internacionais e comprou sua tão sonhada casa na praia. E, falando em viagens, obrigada por insistir com as aulas de inglês, foram muito úteis.
Você se perguntava se seria feliz no futuro e eu estou aqui para te dizer que sim, ao menos na maior parte do tempo. Talvez seja bom que eu lhe diga que o sofrimento, a dor, as decepções e o luto fizeram e ainda fazem parte da sua história. Você chorou muito, gritou, brigou e quase desistiu de tudo muitas e muitas vezes. Precisou e ainda precisa de terapia e por um tempo precisou também de uma ajudinha sintética para dormir. E eu te digo isso sem culpa: a vida às vezes acaba com aquela capacidade natural de cair no sono e não é vergonha nenhuma usar desse artifício para descansar da luta diária. Mas não se preocupe, você se tornou uma mulher sensata que conhece seus limites e soube dosar essa pílula. Ah, você descobriu o Tai-Chi e ele te ajuda muito a encontrar leveza e equilíbrio nessa loucura que é a vida adulta. Uma taça de vinho por dia também ajuda…
Já que estou falando sobre o mundo, quero te dizer que esta carta está sendo digitada no teclado de um notebook conectado a uma rede chamada internet. Isso era futurista demais nos seus 15 anos de idade mas a tecnologia avançou de um jeito que você não seria capaz de sonhar. Ainda não temos carros voadores (ou skates) e ninguém mora na Lua ou em Marte. Mas nos comunicamos com áudio e vídeo de um jeito parecido com o do desenho dos Jetsons.
Eu queria te dar notícias melhores sobre o mundo de hoje mas não tenho muitas, não. Conseguimos nos livrar da ditadura militar no ano em que você se casou. Passamos por um processo de redemocratização política e avançamos em direitos trabalhistas, humanos e sociais. Foi lindo ver um governo de esquerda no poder por quase 20 anos… Mas, infelizmente (e é com muita dor no coração que escrevo isso), fomos arrastados de volta para trás numa onda gigantesca de extrema direita. Sofremos um duro golpe de estado que colocou os malditos liberais de volta ao poder. O Brasil elegeu um político inútil e estúpido, um ex-militar desumano que, com um discurso de ódio contra a esquerda e contra as minorias, atraiu o número suficiente de pessoas que também odiavam os esquerdistas, os negros, as mulheres livres e os pobres (você acredita que os evangélicos são linha de frente nesse absurdo?) e é esse o quadro infeliz que temos hoje: os ricos estão mais ricos e os pobres mais pobres outra vez.
O ano em que escrevo essas linhas é 2021 e, em meio a todo esse desastre social, ainda estamos enfrentando a pandemia de um vírus que está matando milhões de pessoas no mundo todo. Eu estou em casa, em isolamento social, há 14 longos meses e, quando preciso ir para a rua (em casos estritamente necessários), preciso usar máscara e higienizar as mãos com álcool em gel a todo momento.
Temos temos vacina mas não para todos ainda, e já somamos mais de 400 mil mortos no Brasil. São dias muito difíceis para a humanidade como um todo, mas deixa eu te falar que ser brasileiro nesse momento é bem mais complicado. O genocida que usa faixa verde e amarela lá em Brasília garante que é só uma gripezinha, diz que usar máscara é coisa de viado e que os que ficam em casa e respeitam o isolamento social são covardes. Muitos dos seus eleitores acham o mesmo e assim a pandemia segue descontrolada por aqui.
Por fim, queria que soubesse que sou grata por tudo. Eu poderia lhe mostrar os erros que cometeu (não foram poucos) para que eles fossem evitados, mas não vou fazer isso. Eles são parte da essência do que você é hoje, são necessários. Quero que saiba também que planejo viver muito ainda e que vou buscar a felicidade a cada amanhecer. Eu realmente acredito que há muita história pela frente e, quem sabe, te escrevo de novo daqui mais algum tempo com notícias diretamente da sua velhice que, espero, seja saudável e feliz!
Beijos,
Da Elisa de 59 anos de idade.
Exercício 9: Pegue um livro qualquer da sua estante. Abra na página 17. Veja qual é a última frase completa da página. Escreva uma história baseada nela. Se for uma página sem texto, passe para a seguinte até conseguir.
Não tenho muitos livros aqui onde estou, mas puxei o “Tudo e todas as coisas”, de Nicola Yoon e, por razões ideológicas, escolhi a página 13. Infelizmente ela só tinha um gráfico, então fui para a página 31 que é o dia em que eu nasci. Mas lá só havia uma palavra… Como o dia em que estou escrevendo esse texto é 21, temos um vencedor!
“Talvez eu esteja mantendo a esperança de que um dia, algum dia, as coisas mudem.”
É… Talvez eu esteja mantendo a esperança de que um dia, algum dia, as coisas mudem. Só isso seria capaz de explicar as razões pelas quais nada de novo acontece na minha vida: mesma casa, mesma rotina, mesmo emprego, mesma solidão – apesar do mesmo relacionamento de quase 10 anos.
Quem sabe nutrir essa esperança de que alguma coisa poderia mudar, assim, como mágica no melhor estilo conto de fadas, seja exatamente o motivo pelo qual tudo em mim e ao meu redor permanece estático, quase sem vida. Não que eu deixe de manifestar meu descontentamento: faço questão de exibir caras fechadas e apontar os erros das pessoas que me cercam. Se nada está bom e se tudo continua assim, a culpa é deles que não mudam nunca.
E eu me sentia superior pelo fato de não desistir de nada: manter meu trabalho, minha casa, meu relacionamento e minha rotina parecia ser um gesto de amor incondicional a tudo isso. Eu fico onde estou e com quem estou porque, lá no fundo, espero que algum dia as coisas mudem. Mas hoje isso começou a me incomodar.
Eu nunca havia cogitado que alimentar uma esperança poderia ser algo prejudicial. Ter esperança é algo positivo, não é? Afinal, viver na esperança de que alguma coisa mude parece ser o suficiente para manter alguém de pé: ter forças para tolerar mais um dia, mais uma decepção, mais uma crise de ansiedade, mais uma noite de insônia e, quem sabe, o amanhã traga a novidade desejada. Tolerar…
Mas o fato é que esse ciclo se repete dia após dia num looping eterno e a esperança, ao invés de me dar força, acaba drenando toda a minha energia e me colocando na condição de mera espectadora do filme chato que a minha vida se tornou. A imagem que tive de mim mesma agora é a de uma senhora bem idosa enrolada num xale em frente a uma tv sem som, sem expectativa de mais nada a não ser esperar o fim de um programa insosso.
O estranho, porém, é que hoje me dei conta disso e sei exatamente o que acionou esse gatilho em mim: o bando de quero-quero barulhento que fica no terreno ali em frente. O escândalo da gritaria que faziam me enervou ao ponto de eu ir até o portão e esbravejar às pobrezinhas: “Ave irritante que não serve pra nada, parece que nunca dorme ou faz qualquer outra coisa além de gritar ‘quero! quero!’ Quer o que?? Se quer mesmo alguma coisa, vai atrás! Ficar berrando que quer não adianta nada!”
Congelei no mesmo instante em que acabei de gritar insandecida no portão. Alguns segundos depois olhei em volta e me senti aliviada e agradecida por não haver ninguém na rua (chovia bastante e eu estava encharcada). Ninguém me viu ou ouviu, e isso inclui os pássaros que continuaram berrando enfiados debaixo dos arbustos para se protegerem da chuva naquele terreno abandonado.
Corri para dentro de casa novamente, assustada não pela chuva, não pelas aves que continuaram gritando que queriam alguma coisa. Um pensamento me atingiu como um raio: a natureza é esperta, eles gritam sabendo o que querem e conseguem obter. Eles são simples, querem abrigo da chuva e estão abrigados, querem comida e comem, querem voar e voam.
Assim, me aterrorizou pensar que gritei para ninguém mais além de mim, colocando pra fora uma raiva guardada há tempo demais. Mais assustada ainda fiquei ao constatar que a raiva era de mim mesma, da minha inércia, do uso equivocado que fazia da esperança.
Corri para um banho quente, o que sempre faço quando quero chorar. Só que, desta vez, apesar da tristeza, não correu uma lágrima sequer. Meus olhos permaneceram estatelados debaixo da água quente, assim como os de um pássaro que não se incomoda com os pingos da chuva. Minha boca, semi-aberta, atestava meu estado de choque. Eu sou esse quero-quero que tanto eu critico…
Entendi que era hora de sair do ninho e voar. Tive medo de cair, me machucar, quebrar uma asa. Tive medo de sentir fome e frio, tive medo de aves maiores e de outros predadores. Tive medo de gritar ‘quero!’ sem saber exatamente o que queria. Mas sabia que a hora era aquela e não quis que a oportunidade escapasse das minhas mãos.
Saí do banho sacudindo as penas. Cisquei um pouco o chão e me ajeitei na poltrona mais confortável da sala, dei ordem a Alexa para tocar minha playlist favorita, e ali fiquei contemplando o lindo momento de saber exatamente o que eu queria naquele momento. Enchi uma taça de vinho e fiquei ali, sem sentir o tempo passar…
Estava leve e relaxada quando senti o beijo do marido na minha testa perguntando se estava tudo bem. Eu disse que sim e que eu havia tirado um tempo pra mim: “não temos janta hoje, não estava a fim de cozinhar”. Ele estranhou, lógico, mas me viu diferente de um jeito tão bom que me disse, olhando nos olhos: “não tem problema, pedimos uma pizza. Vou tomar um banho e nos encontramos no quarto, que tal?” E assim foi.
O tempo passou e eu continuo na mesma casa, mesmo relacionamento, mesmo emprego. Mas não na mesma atitude. E foi assim que tudo mudou, foi assim que aprendi a gritar “quero!” e ir à luta pra conseguir. Aprendi a sair voando e também voltar pro ninho, às vezes perco umas penas, às vezes brigo pela minha segurança, mas sempre atingindo meu alvo. Fico agora olhando grata pro quero-quero escandaloso do terreno ali em frente e – talvez você não acredite – mas hoje ele me olhou de volta como quem me entende e levantou um vôo silencioso, na plenitude de ter cumprido seu papel por ali.
Exercício 8: Escreva um texto sobre o tema “O que me faz feliz”.
Tentei fugir dos clichês, tipo comercial de supermercado… Espero que gostem, foi um texto sincero.
Escreva um texto sobre o tema “O que me faz feliz”.
Eu gostaria muito de poder traduzir em palavras o que me faz feliz, mas eu sei que não consigo porque não sei a resposta. Aliás, duvido que alguém saiba, e pior: duvido ainda mais que exista alguém feliz o bastante para poder descrever os motivos de sua felicidade.
Não que eu seja triste, absolutamente, não sou. Tenho bons motivos para acordar pela manhã e sou plenamente capaz de contemplar um lindo dia de sol, de amar e receber amor, de rir ou de chorar. Como todo mundo nesta vida tenho dias bons e dias ruins. Me esforço para entender minhas emoções e respeitá-las o suficiente para viver um dia de cada vez.
A esta altura da vida consigo fazer escolhas com base nas coisas que gosto e que não gosto, que preciso, que quero. Nem sempre acerto, mas tento aprender com meus fracassos. Às vezes choro, me emociono, desanimo. Outras vezes, me empolgo e acho tudo lindo, colorido. Tenho momentos de excitação para o bem e para o mal, mas não sei dizer se sou feliz. Não o tempo todo.
Assim, como poderia dizer “o que me faz feliz”? Que autoridade eu teria para isso se nem mesmo sei se sou feliz? Como teria certeza de um sentimento tão utópico? Se não posso afirmar que sou feliz da mesma forma que também não afirmo que sou triste, o que posso afirmar então?
Por outro lado, afirmo – isso sim com a clareza de um cristal – que, embora sem saber se existe realmente a tal felicidade, corro atrás dela como se minha vida dependesse disso e, de certa forma, depende. Procuro a felicidade incansavelmente todos os dias. Ando à sua caça diligentemente como um atleta que deseja superar os recordes mundiais em sua modalidade.
Sigo diligentemente suas pistas. Sim, elas existem, e cada pista revela uma possibilidade, uma essência de felicidade, uma esperança de estar mais perto desse horizonte infinito onde, afinal, seremos felizes de fato. Essas pistas estão por toda a parte e assumem diferentes formas a cada minuto: ora estão no sorriso de uma criança, ora em uma flor. Às vezes se materializam quando ando de mãos dadas com alguém que eu amo e que me ama de volta.
Já encontrei pistas da felicidade num bolo que cresceu como deveria, num artigo científico publicado, num pôr de sol, naquele capuccino perfeito ou em um prato de comida bem feita. Mas elas são tão voláteis… Todas as vezes em que pensei ter chegado ao lugar onde a felicidade mora, ela sempre me escapa, some no ar e se desfaz como fumaça. E aí sou obrigada a procurar de novo e uma nova pista surge como uma pequena faísca distante e tão nebulosa que mal consigo entender sua forma.
Nessa hora trato de fixar o olhar e ajustar o foco para, então, dar novos passos determinados em sua direção. Eu já sei que, no exato instante em que eu conseguir alcançá-la, a pista vai se desfazer novamente… Mas o processo vale a pena. Quando estou nesse caminho de busca me sinto bem, me realizo, me energizo. E, talvez, seja isso o que me faz feliz.
Exercícios 6 e 7: Leiturinhas rápidas
Leiturinhas curtas e rapidinhas: pra ler correndo.
E aí, está curtindo? Tentou fazer algum exercício também? Me conta aí nos comentários 😉
Exercício 6
Defina em um parágrafo: O QUE É A VIDA?
Vida é inspiração. É o ar entrando devagar pelas narinas, pelos olhos, pelos ouvidos, pela boca, pela pele, pelas mãos. Passando por cada veia e refrigerando cada músculo, cada órgão, renovando o estômago, os rins, os pulmões, coração e o cérebro. É esse ar fluindo e empurrando para fora cada obstáculo que o prende, que o suspende, que o impede de cumprir o seu destino e fazer o seu caminho de volta, purificando cada passagem dentro de cada um nesse seu retorno. É esse mesmo ar correndo depressa e limpando todas as entranhas até chegar novamente nos pontos por onde entrou e agora, de forma reversa, sair como um suspiro, como um olhar tranquilo, um ouvir sensível, uma palavra leve, um arrepio gostoso e um gesto de gentileza. Vida é inspirar renovo e expirar amor.
Exercício 7
Guimarães Rosa criou muitas palavras, como “nonada”, para definir algo sem importância. Agora é a sua vez: crie três palavras com as respectivas definições. Mas confira no dicionário se não existem mesmo!
- Murugudagem: malandragem, vadiagem. Ex: “Não confie nele, é cheio de murugudagem”
- Almosa: pessoa com bom coração, de alma pura e de boas intenções. Ex: “Minha mãe foi a pessoa mais almosa que já habitou nesta terra”
- Oquenta: oca, vazia. Ex.: “Hora de irmos ao mercado: nossa geladeira é a mais oquenta da cidade!”
Exercício 5: Ella, a bruxa comunista
Conheçam a história de Ella. Este conto não se trata de um exercício da caixinha, mas de um exercício de pensamento crítico dos dias atuais. Qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência.
Ella, a bruxa comunista
Era uma vez uma menina que, desde bem pequenina, se mostrava diferente das demais. Gostava de brincar com as outras crianças da sua idade, mas sempre procurava brincadeiras que fossem divertidas e legais para todas elas. Não achava justo que alguém ficasse triste ou deixado de lado enquanto outras crianças riam ou ignoravam qualquer uma que fosse.
Muito inteligente e estudiosa, quando estava na escola, ficava sempre atenta aos coleguinhas e, ao detectar alguém com dificuldades de entender alguma matéria, se dispunha a ajudar. Na hora do recreio era muito comum que Ella dividisse seu lanche com amiguinhos e amiguinhas que não tinham o que comer. Sua mãe caprichava na quantidade de comida na lancheira, incentivando sua filha a ser generosa com os que tinham menos recursos.
Ella amava a natureza. Sabia que não era legal arrancar flores do jardim ou maltratar os animais. Ainda pequena, já cultivava algumas hortaliças no quintal, ajudada por sua mãe e construía casinhas de pássaros com seu pai. Ella era especialmente apaixonada pelos pássaros: lia tudo o que podia sobre eles, sabia distinguí-los por seu canto, acompanhava os ovinhos chocados nos ninhos das árvores do quintal de casa, observava as casinhas de barro construídas nos postes e sinaleiras das ruas do bairro.
Seu gosto por alimentos era bem peculiar para a sua idade. Enquanto doces e refrigerantes dominavam o cardápio das crianças em geral, Ella preferia alimentos naturais, verduras e legumes, fibras e sucos de frutas. Esse paladar característico, aos poucos, acabou levando seus amigos a recusarem a oferta de dividir o lanche, mesmo aqueles mais carentes, que achavam a comida de Ella muito esquisita. Na verdade, achavam que Ella era esquisita.
E Ella era mesmo diferente e isso sempre lhe trazia problemas. Ao defender a natureza e não compactuar com injustiças e maldades, foram muitas as vezes em que Ella precisou confrontar meninos e meninas com atitudes maldosas. Incompreendida e alvo de críticas e ataques, Ella foi aos poucos se afastando do convívio nos momentos coletivos de brincadeiras e recreio até que, mais tarde, acabou se isolando das pessoas de uma forma mais geral.
Assim, Ella se tornou uma moça solitária. Essa solidão cresceu ainda mais quando seus pais partiram, vitimados por um vírus que ceifou milhares de vidas em todo o planeta. Ella, então, foi construindo um mundo próprio, cheio de cores e de vida que a maior parte das pessoas não consegue entender ou aceitar.
Ela continuou morando na casa de seus pais, que foi envelhecendo com o tempo. Cuidava do jardim com lindas flores e do quintal com uma rica horta cheia de ervas medicinais e de um lindo pomar com frutas doces e de uma beleza natural. Tudo o que ela precisava para se alimentar estava bem ali. Como amava os animais, não podia ver um cãozinho ou um gato abandonado que logo tratava de cuidar dele e, assim, a casa foi se enchendo de bichinhos domésticos.
Ella era muito talentosa e possuía diversas habilidades artísticas: sabia esculpir em argila, pintava telas lindíssimas com tintas naturais que ela mesma fabricava, tocava flauta e amava dançar. Dançava por horas entre as árvores do seu quintal, acompanhada de seus bichos de estimação. Lia muito, em especial, a enciclopédia de medicina natural que herdou de seu pai, que fora um farmacêutico muito conhecido no bairro. O conhecimento que adquiriu pela leitura se transformou em sua prática cotidiana e profissional.
Seus unguentos, pomadas e remédios eram muito procurados pelas pessoas que moravam na sua cidade e Ella prontamente atendia a todos e todas que precisassem de sua ajuda. Nunca negou uma gota de seus remédios a quem não podia pagar, mas ia semanalmente à feira do seu bairro para vender seus produtos medicinais e geleias naturais que fazia com as frutas de seu quintal. Assim, Ella garantia o seu sustento.
Na verdade, quase não precisava de dinheiro para viver. Seu estilo de vida era extremamente simples. Sua comida saía basicamente toda do seu quintal, a luz que precisava vinha das velas aromáticas que ela mesma fabricava e sua água era puxada do poço que seus pais cavaram quando ela ainda era pequena. Andava sempre a pé pela cidade, não ia muito além do seu bairro. O que mais precisasse para suas artes ou outra questão qualquer, a renda que vinha do seu pequeno negócio natural cobria tranquilamente.
Dessa forma, Ella vivia sua vidinha de forma absolutamente simples, porém, não passava despercebida dos demais. Como entender uma moça solitária, talvez com seus 25 anos (quem saberia dizer?), cuja casa envelhecia a olhos vistos, sem carro na garagem, sem tv ou mesmo luz elétrica? Quão estranha deve ser uma moça que não frequenta salões de beleza, costura suas próprias roupas e nunca pisou em um shopping? E, o que dizer do tanto de bichos que ela abriga?
Sim, o estranhamento em relação à Ella era enorme a ponto de, apesar de toda esquisitice evidente para os cidadãos e cidadãs “normais” ao seu redor, ninguém – absolutamente ninguém – ousava confrontá-la ou mesmo conviver com ela. As lendas sobre Ella eram inúmeras: seria uma louca que vagueia pelas ruas madrugada afora? Usaria os animais para seus rituais malignos? Suas ervas medicinais seriam alucinógenas? Teria matado seus próprios pais?
Todas as histórias a respeito de Ella eram fruto do medo insano que as pessoas tinham dela pelo fato de ser diferente dos demais. E esse preconceito acabava atingindo aqueles que consumiam seus produtos, fazendo com que sua clientela fosse diminuindo ao longo do tempo. Ella sabia que esse era um preço a ser pago por sua opção de vida, mas pensando principalmente nas pessoas que necessitavam de ajuda, arriscou alguns projetos para além dos seus muros.
Começou a plantar uma horta comunitária num terreno abandonado numa rua próxima à sua casa. Limpou o terreno, preparou a terra e levou para lá algumas mudas que foram crescendo e colorindo o lugar. Em pouco tempo, estavam disponíveis pés de alface e couve, tomate e cenouras: livres para quem precisasse pegar. A princípio uns poucos curiosos passavam ali perto sem coragem de sequer tocar numa folhinha que fosse mas, com o passar do tempo, Ella percebeu que algumas famílias iam até lá de vez em quando para uma colheita.
Isso trouxe uma alegria nova ao coração de Ella, que continuava a cuidar da horta sozinha, mantendo-a sempre viva. Acontece que, para algumas pessoas, ser diferente e promover o bem comum, é algo que não pode ser tolerado. Logo um grupo de opositores a essa iniciativa se levantou para espalhar mentiras a respeito da horta, levantando dúvidas em relação ao tipo de ervas que poderiam estar entre as hortaliças e alimentando boatos a respeito do caráter e intenções de Ella.
Foi assim que numa manhã, quando Ella chegou com novas mudas para plantio, deparou-se com a horta toda destruída e com diversos cartazes de acusação e ameaças, caso insistisse com o projeto. Pela primeira vez, Ella sentiu-se totalmente desamparada e profundamente triste. Ali mesmo, deixou seu corpo cair ao chão e, de joelhos, chorou copiosamente. Suas mãos estavam trêmulas, não sentia força alguma em seus braços e pernas e sua cabeça parecia explodir de tanta dor. Depois de muito chorar, desfaleceu em um sono de cansaço, caída entre os cartazes e hortaliças arrancadas e pisoteadas.
Acordou horas depois em sua própria cama e teve a impressão momentânea de que tudo aquilo não passara de um pesadelo horrível. Ao abrir seus olhos, porém, viu sentada ao pé do seu colchão uma moça, aparentemente da mesma idade, de uma beleza como poucas já teve a oportunidade de ver em sua vida. O susto dessa visão iluminada a fez levantar-se de um pulo só, o que resultou em uma forte tontura que quase a fez cair. A moça bonita rapidamente a amparou e a ajudou a sentar-se calmamente em sua cama, lhe ofereceu um chá feito com as hortelãs do quintal de Ella e trouxe um pedaço de um bolo integral que encontrou na cozinha.
Ella alimentou-se devagar enquanto as duas apenas se entreolhavam em silêncio. Ella não conseguia disfarçar a surpresa e o sentimento de que, se o acontecido de antes fora um pesadelo, o momento de então era como um sonho bom. Bebeu seu chá, deu uma mordida no bolo mas, não conseguindo mais conter sua curiosidade, puxou a conversa primeiro agradecendo e, a seguir, perguntando o que era tudo aquilo.
A linda moça então explicou quem era e porque estava ali. Contou que conhecia Ella desde criança, que estudaram na mesma escola e cresceram juntas no mesmo bairro, mesmo que nunca tenham trocado uma palavra sequer. Disse que sempre observou com admiração e respeito as atitudes de Ella ao repartir seu lanche, cuidar da natureza, proteger as crianças mais frágeis do bullying que sofriam, mesmo sendo ela mesma vítima de tantos ‘valentões’…
Disse também que respeita a coragem de manter um estilo de vida tão distante dos padrões impostos pela sociedade e que até mesmo tinha uma certa inveja disso já que sua aparência é toda moldada segundo as regras de beleza vigentes. A moça confessou que esse acompanhamento que fez da vida de Ella desde pequena ultrapassa um pouco os limites do simples observar. Pediu desculpas educadamente antes de confessar que, em muitas ocasiões, interferiu de forma indireta na vida de Ella. Contou que é compradora assídua de suas geleias, chás e outros produtos naturais que vende na feira. Possui também uma coleção de suas obras de arte: várias telas estão emolduradas nas paredes de sua casa e algumas esculturas enfeitam a mobília cara de seus cômodos.
Os olhos de Ella, cheio de surpresa e de lágrimas, não podiam crer naquela cena e tentavam encontrar algum sinal no rosto daquela mulher que indicasse já tê-la encontrado antes. Simplesmente não podiam ser verdadeiras aquelas palavras pois Ella era sempre muito atenta às pessoas que interagiam com ela, olhando-as diretamente nos olhos. Ela se lembraria, com certeza, daquele olhar brilhante…
A moça, sensível ao olhar confuso de Ella, explicou que nunca comprou nada pessoalmente. Geralmente pedia que pessoas que trabalham em sua casa ou empresa fossem à feira ou, em muitas ocasiões, oferecia uns trocados a desconhecidos para comprarem enquanto esperava dentro do carro a alguns metros de distância.
Ella cobriu o rosto com suas mãos novamente trêmulas, mas agora de um jeito bom, enquanto tentou balbuciar algumas palavras que misturavam gratidão, surpresa e uma enorme curiosidade que tinha, sim, um certo medo por ter sido observada tão de perto e por tanto tempo sem nunca sequer desconfiar. Respirou fundo e, com as forças voltando ao seu corpo, resolveu levantar da cama, foi até a cozinha e convidou a moça a sentar-se à mesa.
Foi a vez de Ella oferecer-lhe um chá e uma fatia de pão caseiro integral com um pouco da geleia que, aparentemente, a moça conhecia bem e apreciava. E então quis saber mais, quis contar mais e ficaram por horas conversando como se fossem amigas muito próximas de longa data. Descobriu na conversa que tinha uma colaboradora no projeto da horta que passava por lá para plantar algumas sementes também (o que explica aquele agrião que nasceu ali, assim, do nada e que Ella achou ter sido trazido no bico de algum pássaro).
Esse foi o início de uma bela amizade que foi crescendo nas semanas e meses seguintes, fato que obviamente chamou a atenção das mesmas pessoas que odiavam Ella apenas por ser diferente. Novos boatos começaram a surgir, agora voltados a questionar o tipo de relação entre as duas mulheres ou a sugerir que essa agremiação crescente de possíveis ‘bruxas’ poderia significar um grande perigo às famílias e crianças da vizinhança.
A despeito disso, conforme o tempo passava, as duas moças nutriam um amor fraterno e sincero cada vez maior. Viviam em mundos diferentes e tinham estilos de vida completamente diversos, mas a simplicidade da alma era o principal elo que as unia.
Homens e mulheres cheios de ódio passaram a se reunir, a princípio às escondidas, para planejar formas de banir de uma vez aquela figura indesejada. Criou-se um grupo em uma mídia social que costuma acolher perfis tóxicos sem muita censura e iniciou-se uma campanha de difamação da pobre Ella (que nem internet tinha em casa e nunca usou um celular na vida). Postagens com conteúdos falsos e fraudulentos começaram a viralizar e rapidamente uma rede de ódio se formou.
Ella, sem entender muito bem o que estava acontecendo, percebeu os olhares raivosos cada vez que saía de casa para ir à feira, onde sentiu um esvaziamento ao seu redor. Sua clientela desaparecera. Já não podia sequer ir ao jardim cuidar das flores porque sempre havia pessoas mal encaradas em frente ao portão, observando por cima do muro tudo o que ela fazia. Ella bem que tentou continuar sua vida normalmente, mas isso começou a ficar difícil até que se tornou impossível.
O movimento criado contra Ella tomou as ruas assim como as redes sociais e rapidamente se juntaram centenas de pessoas indignadas com essa mulher esquisita, enlouquecida e maligna, que representava um sério perigo à comunidade, seja por motivos de saúde pública (casa imunda, cheia de animais de rua/drogas/poções ‘mágicas pseudofarmacêuticas’??), seja por questões morais com seu comportamento fora dos padrões, sua ‘amizade’ com outra mulher, suas danças alucinadas no quintal, ou seja: simplesmente por ser livre para ser como achava melhor…
Moradores do bairro, inflamados de ódio contra Ella, jogavam pedras em sua casa, atiravam objetos em seus bichos de estimação, arrancavam as flores de seu jardim e gritavam palavras de ordem contra ela pedindo sua morte, clamando por justiça contra todas as pessoas que ela – supostamente – já havia fraudado com seus produtos ou mesmo prejudicado com suas bruxarias. Acuada dentro de casa e com muito medo, Ella acreditava que seu fim havia chegado.
A hashtag #ellabruxacomunista ganhou adeptos de várias cidades e estados até mesmo geograficamente distantes da cidadezinha onde Ella nasceu e viveu e, num piscar de olhos, uma campanha nacional contra ela estava formada. A pequena cidade passou a receber a presença de jornalistas e fotógrafos ávidos por imagens e informações dessa pessoa já odiada em nível nacional.
Esse inferno se instalou tão rapidamente e com tanta potência que parecia que um furacão estava passando sem qualquer aviso e destruindo tudo o que tocava com sua fúria. A cabeça de Ella girava, ela ouvia os gritos histéricos das chamadas “pessoas de bem” que, com seus olhos saltando para fora do rosto, exigiam sua cabeça em nome de Deus e pelas famílias. No meio de todo o seu desespero, Ella repassava sua vida mentalmente tentando encontrar o crime hediondo que havia cometido para merecer todo aquele julgamento, aquela inquisição. Sim, uma fogueira pós-moderna ardia mesmo que nenhuma tocha tivesse sido acesa.
Em meio a toda essa comoção, sentiu-se só. Mais só do que em toda a sua vida. Nem mesmo quando seus pais morreram a solidão invadira sua alma como nesse momento. As ausências em sua vida eram uma constante e, refletindo sobre isso, percebeu que há tempos a moça bonita também a havia deixado. Ella olhou ao redor e viu apenas seus cães assustados, ali firmes e presentes por ela, e pensou que não podia mais protegê-los, visto que sua própria vida estava por um fio. Esse pensamento doeu ainda mais forte em sua alma já tão angustiada.
Confinada em sua casa, sem parentes e amigos, Ella não dormia mais. Seus pensamentos se avolumavam em sua mente de forma a não permitir que seus olhos se fechassem por mais do que quinze minutos para, de repente, pular da cama assustada por algum pesadelo qualquer. Inclusive, a coisa mais certa em sua vida eram os pesadelos que tinha nesses breves cochilos. Um deles era recorrente: sonhava que sua casa estava em chamas, tudo o que tinha de mais precioso ardia em meio a um fogo inapagável. No sonho, Ella carregava inúmeros baldes de água que, num looping infinito, ela jogava nas chamas que só aumentavam e estalavam como que rindo de seu esforço inútil. Ella sempre acordava desse pesadelo com o coração disparado e o corpo molhado de suor e medo.
Perdeu o apetite também. O alimento para Ella não tinha mais cor, sabor, perfume. Começou a definhar, suas roupas pareciam cada vez maiores sobre um corpo frágil e esquelético quase sem vida. Deixou de ir ao quintal, não dançava mais e o silêncio passou a ser a marca registrada de sua existência. Seus dias eram entregues revezando a cama insone e a cadeira da cozinha onde às vezes tomava um chá. Com seu silêncio, as vozes ao redor começaram a diminuir também e, aos poucos, Ella foi esquecida pela multidão. Os ataques pararam, os curiosos deixaram de rodear a casa, já que as flores secaram, as árvores não tinham mais frutos e o mato só crescia ao redor.
Ella envelheceu. As poucas forças que lhe restavam eram direcionadas ao cuidado de seus cãezinhos até que, por fim, numa rara saída, resolveu deixá-los em um canil da cidade para adoção. Agora, livre de qualquer responsabilidade sobre outras pessoas, Ella foi aos poucos se despedindo da vida, absolutamente só. No balanço de sua existência, as poucas pessoas a quem se afeiçoou eram as luzes cada vez mais fracas que guiavam seu caminho: seus pais e a moça bonita que, sem qualquer explicação, desapareceu de sua vida num piscar de olhos.
Conforme aceitava seu destino, Ella começou a sentir-se livre novamente. Uma liberdade diferente, inédita e inexplicavelmente leve diante das circunstâncias. Seu corpo fraco mal se movia, mas sua alma parecia voar, sobrevoando a tudo e a todos, acima do tempo e dos lugares. Seus olhos agora não queriam mais se fechar, o descanso não era mais necessário porque todo o cansaço da vida tinha sido superado pela leveza dessa nova liberdade. O pesadelo acabara e a tristeza foi se tornando uma vaga lembrança até ser esquecida por completo. Não havia mais fome também porque, nesse diferente estado de vida (sim, vida), o corpo estava plenamente saciado de luz, de brisa, de ar.
Livre e plena, agora Ella pôde enxergar com clareza cristalina que não estava mais só: a seu lado, seus pais e a moça bonita eram suas companhias. Com os olhos marejados de felicidade, levantou sua cabeça e viu o lindo jardim onde estavam: cheio de árvores frutíferas, uma linda e farta horta com verduras e legumes tão coloridos como jamais havia visto. Numa mesa à sua frente, uma louça fina servia um delicioso chá, pães e biscoitos caseiros e alguns potes de geleias coloridas e perfumadas, feitas com frutas frescas do pomar. Lá ao longe viu seus cães correndo felizes. Então Ella entendeu que a vida verdadeira estava apenas começando.
Enquanto isso, os jornais locais noticiavam que um incêndio, iniciado provavelmente por um cigarro aceso jogado por cima de um muro, havia destruído a casa da moça estranha nacionalmente conhecida como a “bruxa comunista da cidade”. A pequena nota comunicava terem sido encontrados os corpos de duas vítimas: o da antiga moradora da casa (já reconhecido) e o de uma mulher de identidade ainda desconhecida, o qual os vizinhos acreditam ser de uma amiga que tentou socorrê-la durante o incêndio.
Exercício 4: Conte uma história composta por uma colagem de frases extraídas de músicas que todo mundo conhece
Vamos lá, quero ver todo mundo cantando comigo!
Quando olhaste bem nos olhos meus, e o teu olhar era de adeus, juro que não acreditei… Depois de varar madrugada, esperando por nada, de arrastar-me no chão em vão, tu viraste-me as costas, não me deu as respostas que eu preciso escutar.
Pode dizer que tudo o que fiz por você foi uma grande ilusão, mas era só abrir a porta do meu coração. E foi então que resolveu me abandonar.
Eu quero lhe falar, meu grande amor: não te esquecerei um dia, nem um dia! É mentira se eu disser que não penso mais em você. Ah… se já perdemos a noção da hora, se juntos já jogamos tudo fora, me conta agora como hei de partir? Que é que eu faço amanhã, quando eu me levantar e não ter mais teu corpo pra me aconchegar?
Eu só penso em você. Fiquei em casa à espera de nada: nenhuma visita, nenhuma chamada… nenhuma esperança, nenhuma canção. O mundo assim parece tão imenso e eu continuo vivendo em vão. Volto ao jardim com a certeza que devo chorar, pois bem sei que não queres voltar para mim.
Saudade, palavra triste, quando se perde um grande amor… Às vezes, no silêncio da noite, eu fico imaginando nós dois. Eu fico ali sonhando acordado juntando o antes, o agora e o depois.
Você pagou com traição a quem sempre lhe deu a mão! O amor é feio, tem cara de vício…
Mas eu não posso mais ficar aqui a esperar que um dia de repente você volte para mim. Eu não tô aqui pra sofrer, vou sentir saudade pra que? Chorei, ah eu chorei, não procurei esconder. Ali onde chorei, qualquer um chorava. Dar a volta por cima que eu dei, quero ver quem dava!
Quando você me quiser rever, já vai me encontrar refeita, pode crer. Olhos nos olhos, quero ver o que você faz ao sentir que sem você eu passo bem demais… Mas não tem revolta, não. Eu só quero que você se encontre.
Quero que você seja feliz. Hei de ser feliz também depois…
Músicas
Olhos nos olhos – Chico Buarque
Sonhos – Caetano Veloso
Volta por cima – Beth Carvalho
Bye bye tristeza – Sandra de Sá
Vou festejar – Beth Carvalho
Depois – Marisa Monte
Eu só penso em você – Kid Abelha
As rosas não falam – Cartola
O que eu faço amanhã – Alcione
O amor é feio – Tribalistas
Meu primeiro amor – Roberta Miranda
Eu te amo – Chico Buarque
Atrás da Porta e Como nossos pais – Elis Regina
Chama da Paixão – Cheiro de Amor
Sentado à beira do caminho – Erasmo Carlos
Amores Imperfeitos – Skank
Nem um dia – Djavan
Sozinho – Caetano Veloso
Exercício 3: Escreva um texto com 200 palavras, todas iniciadas com vogais
Esse foi um dos mais difíceis até agora, um verdadeiro desafio encontrar 200 palavras e montar um texto que fizesse algum sentido… Mas está aí o resultado! Tenta também, é muito bom ver o resultado no final das contas 😉
Ora essa… assistimos a uma atração incrível agora, um importante acontecimento. Imagine um ego astronômico, alguém egoísta até o osso, implicante e arrogante – insuportável. Esse era o Álvaro: o importúnio encarnado em um universitário azucrinante. Um encosto, uma úlcera, uma agonia eterna atrapalhando as aulas.
Era insistentemente invasivo e inconveniente, apelidando os amigos e interrompendo as aulas em anedotas estúpidas e estapafúrdias. Achava-se inteligente e esperto, amava arrotar abastança e ostentação. Estacionava o Audi azul arrogantemente e andava empinado… Era oportunista e ausente em afazeres escolares. Aparecia à aula atrasado e ia embora antes. As aulas eram um inferno! Éramos assiduamente incomodados e angustiados. Evitávamos esse encosto invariavelmente e ele insistia em aporrinhar os estudantes.
Isso até ontem, o último assédio, enfim! Estávamos almoçando e ele estava ali andando aceleradamente, estranhamente irritado e aparentemente apavorado. Umas estudantes enraivecidas avançaram até ele e o atacaram atirando ovos enquanto ele escapulia urrando em ódio e infâmia. Afinal, o infortúnio o apanhou! O ensejo? Ele, abusadamente, as ofendeu amiúde, impondo-lhes o apelido “aves escandalosas” e assobiando ironicamente enquanto elas apenas andavam ou alegravam-se atabulando. Ele assim agiu ininterruptamente até ontem. Aprendeu essa aula especial, Álvaro? Essa é a última ofensa ocorrida aqui! Acanhamento é ouro, amigo…
Exercício 2: Escreva uma história a partir da seguinte frase: “Preparem-se para um pouso de emergência!, disse o piloto pelo sistema de som”.
O título é meio assustador… mas segue na leitura que eu te garanto que a história é fofa ❤️
“Preparem-se para um pouso de emergência!”, disse o piloto pelo sistema de som. Eu ainda estava um pouco sonolenta, naquele finalzinho do efeito do remédio para dormir e, por isso, levei alguns segundos a mais para entender o que estava acontecendo.
A viagem já durava mais de sete horas, muito cansativa por causa das fortes chuvas e das constantes turbulências durante o vôo. A tripulação passou boa parte da viagem sentada nas cabines com “o cinto afivelado” assim como todos nós, os passageiros. Estávamos todos tensos e com fome, já que o serviço de bordo ficou suspenso por causa das condições de vôo. Sem uma refeição decente e cansada por ter embarcado às 6h da manhã depois de dormir em albergues nos 15 dias de férias em Madrid viajando como mochileira, só me restava dormir.
As fichas finalmente começaram a cair quando atinei para a gritaria na aeronave e, rapidamente, chequei se o meu cinto estava mesmo fechado, levantei o encosto e estiquei um pouco o pescoço para ver o que estava acontecendo ao meu redor. Todos estavam muito assustados, tentando acalmar uns aos outros. Alguns poucos gritavam, desesperados mesmo. Crianças choravam, idosos rezavam. A maioria estava de olhos fechados e, não sei por que, isso chamou minha atenção.
Eu estava sentada na poltrona da janela e olhei para fora. Estava muito escuro, a não ser por umas nuvens parecidas com chumaços de algodão desfiado que esbranquiçavam o céu de vez em quando. Lembro de ter pensado que a situação não deveria ser muito ruim, já que não vi nada pegando fogo e, aparentemente, as peças do avião estavam todas em seus lugares. Olhei o relógio e, pelas minhas contas, ainda teríamos pelo menos mais umas 3 horas de viagem até São Paulo. Ou talvez mais, já que as dificuldades com o clima poderiam ter aumentado o tempo previsto para o vôo.
Tentei imaginar em que lugar do planeta estaríamos naquele momento mas, como geografia nunca foi o meu forte, desisti logo em seguida. Meu estômago roncou e então me lembrei que ainda deveria ter alguns amendoins dentro da bolsa e, quando me abaixei para pegá-la embaixo do banco, senti uma pressão forte nos ouvidos e tive a nítida impressão que a aeronave estava descendo de forma brusca. Desisti de procurar a bolsa e me agarrei com força nos braços da poltrona, os ouvidos tinindo por causa do ar comprimido e dos gritos dos passageiros apavorados.
Estava assustada demais para perceber que esmagava a mão da senhora que estava sentada ao meu lado segurando o mesmo braço da poltrona que eu. Delicadamente ela mexeu sua mão tentando “escorregá-la” por debaixo da minha e só aí foi que me dei conta de que ao meu lado, durante toda a viagem, havia um simpático casal de velhinhos. Pedi desculpas pela indelicadeza de apertar sua mão quando, na verdade, queria pedir desculpas pela minha insensibilidade em nem ter percebido que ela estava ali o tempo todo. “Que pessoa horrível eu sou”, foi o pensamento que veio à minha mente e congelou minha espinha quando me flagrei que esse pensamento poderia ser meu último antes de morrer.
Minha catarse foi interrompida por uma nova mensagem do piloto informando que o avião tinha sido autorizado a fazer um pouso de emergência em um aeroporto qualquer de uma pequena cidade no nordeste do Brasil, não sei bem onde – eu estava atordoada demais para conseguir entender.
Fiquei estática, olhando assustada para aquela gentil senhora ao meu lado e ela, percebendo meu estado patético-catatônico, inverteu a posição das nossas mãos e, carinhosamente, segurou a minha para me tranquilizar. Pude então me acalmar um pouco e reparei que nós estávamos de mãos dadas assim como ela e o senhor que estava ao seu lado esquerdo também estavam. Os três, de mãos dadas, numa energia boa, bem diferente daquela que pairava na aeronave de um modo geral.
Mais alguns minutos e chegávamos ao tal aeroporto. Depois de um pouso difícil porém bem sucedido que provocou suspiros de alívio em todos nós, seguiram-se palmas efusivas ao piloto, elevado temporariamente à categoria de herói e salvador das nossas vidas. Passadas essas fortes emoções, ficamos assentados em nossos lugares aguardando o desembarque. Foram cerca de 40 minutos até que fôssemos liberados e, durante esse período eu tive o privilégio de conhecer as pessoas mais doces e amáveis que vi em toda a minha vida.
Dona Augusta e Seu Rogério, paulistanos da “gema”, como eles mesmos se autointitularam, voltavam também de Madrid, onde passaram sua sexta lua de mel em comemoração aos 50 anos de casamento. Sim, uma lua de mel ao se casarem e mais uma a cada dez anos! Aquilo era inacreditável para mim, fora da minha realidade em todos os sentidos: não conhecia absolutamente nenhum casal que tivesse chegado aos 50 anos de casamento e, sinceramente, não poderia imaginar que fosse possível atingir esse marco trocando olhares apaixonados e de mãos dadas…
Fiquei meio sem palavras e só consegui dar os parabéns ao casal e suspirar murmurando o quanto gostaria de ter uma história como essa. Dona Augusta simplesmente sorriu para mim e com o olhar e voz mais sinceros que já vi, me garantiu que isso era perfeitamente possível e que tinha certeza que eu também completaria 50 anos de casada com uma pessoa maravilhosa que me faria muito feliz por toda a vida. Eu sorri de volta, incrédula, mas agradecida pelo carinho sincero dessa senhora gentil, desconhecida e certamente muito otimista.
Muito sensível, d. Augusta percebeu minha falta de fé e me disse de forma decidida: “o segredo de uma união tão duradoura? Nenhum, simplesmente não existe segredo algum!” Talvez por causa da piada marota da idosa ou, então, por conta da minha cara de espanto, tanto ela quanto s. Rogério caíram numa gargalhada tão gostosa que acabei rindo também. O papo seguiu mais descontraído e muito instrutivo para mim que, aos 25 anos de idade nunca havia namorado alguém por mais de seis meses consecutivos e que, jurava “de pé junto” que nunca se casaria.
Ouvia as histórias que eram contadas pelos dois, um ajudando o outro a se lembrar melhor dos casos ou corrigindo partes em que um deles se enganava na narrativa. Mas o que mais me impressionou foi ouvir os planos que eles já tinham para a próxima lua de mel! Duas pessoas beirando os 70 anos de idade acreditando mesmo que ainda estariam juntos nos próximos dez anos comemorando bodas de 60 anos de casamento. Lá no meu íntimo torci para que conseguissem.
As portas do avião se abriram e os passageiros foram saindo felizes da aeronave um a um. Eles primeiro, por causa da idade. Nos despedimos com um abraço daqueles que só os grandes e velhos amigos de longa data são capazes de dar. Eu fiquei olhando eles irem embora, encantada com o carinho e o cuidado deles, ajudando com as bagagens, facilitando a passagem, sorrindo um para o outro. Fui a última a sair do avião, sem pressa alguma. Fiquei ali sentada, repassando cada minuto dessa experiência inesquecível e sonhando em ter eu mesma uma história de amor assim tão linda…
Exercício 1: Uma história de A a Z
Post de estréia do blog, meu primeiro exercício de criatividade:
Escreva uma história em que cada frase comece com uma letra do alfabeto, na sequência certa, de A a Z.
“Ah, eu sabia!”, disse a moça já cansada de tantas decepções com o que, por aí, as pessoas chamam de amor.
“Bem que minha intuição me avisou, eu devia ter escutado minha voz interior e entendido os sinais logo de cara…” As lembranças de decepções passadas voltaram todas de uma vez e caíram como um raio sobre a sua cabeça, eletrizando cada sentido do seu corpo de sua alma.
“Como foi que você entrou nessa outra vez, sua idiota? Não aprendeu nada com a vida até agora?” Chocada e incrédula por sua ingenuidade, culpava única e exclusivamente a si própria por se encontrar, novamente, nesse estado de tristeza e solidão. Decepcionada sim e, com certeza consigo mesma.
Decepção consigo mesma explicava muita coisa mas não explicava tudo. Simplesmente não era possível que só ela estivesse errada nessa história. Certamente essa decepção tinha outras origens e ela estava disposta a identificá-las uma a uma. Decepcionada com o que mais? Com quem mais? Os homens? Com a humanidade? Com a vida? Com o amor, se é que ele existe mesmo?
Era muito difícil distinguir o lugar certo de onde vinha mais essa decepção e ficou complicado decidir onde exatamente deveria depositar sua raiva nessa hora. Difícil também definir os sentimentos que ficaram ainda mais embaralhados. As emoções indefinidas a cercavam por todos os lados, subiam e desciam de sua cabeça para o seu coração e, de lá, direto para o seu estômago, de onde subiam para a boca como um jato de vômito inevitável. Por isso, escolheu o caminho mais fácil: direcionar esse imbróglio como uma seta inflamada de culpa na direção de todas as pessoas que a magoaram até então. Decidida como uma guerreira medieval, entesou o arco e lançou várias flechas na intenção de ferir mortalmente cada uma dessas pessoas (ao menos dentro de si).
Flecha número 1: Essa vai direto para ele, esse homem falso e mentiroso que a iludiu e a enredou com seus encantos até que, enfim, ela se tornasse uma presa fácil, entregue e disponível oferecendo seu pescoço para que ele enterrasse suas presas e sugasse todo o seu sangue, suas energias. Sim, ele era o primeiro culpado a ser flechado. Esse vampiro maldito sugou dela o melhor que possuía e se alimentou de sua força interior até esvaziá-la e deixá-la caída e só, inerte no chão frio e sujo desse relacionamento. Sim, ele deveria ser o primeiro a morrer, “esse mentiroso, traidor!” Mas, enquanto mirava a flecha no coração do traidor, voltavam como certeiros bumerangues as lembranças de tantos sinais de desinteresse e desamor que esse pulha nunca fez questão de esconder: o passeio que ela marcou e ele não foi (desculpa amor, comi algo que me fez mal e não saí do banheiro a noite toda), nem se dignou a avisar (puxa, foi mal, esqueci de trazer o celular pro banheiro e estava tão fraco que acabei dormindo até agora), e só deu desculpas esfarrapadas no dia seguinte, depois da ida surpresa na casa dele logo cedo antes do trabalho, quando ele apressadamente a levou até o portão jurando mil amores, pedindo mil perdões, prometendo compensá-la depois e a impedindo de entrar “porque a casa estava uma bagunça, sabe como é, noite difícil…”. Passou o resto do dia enviando mensagens fofas pelo whatsapp e assim, tudo certo. Devidamente compensada.
“Galhuda, isso é o que você é, menina, uma corna! Nasceu pra ser, conforme-se com isso! Nunca vai encontrar o amor verdadeiro, o parceiro ideal, fiel e companheiro. A felicidade te odeia. Acostume-se a ser triste, amarga e só, muito só e rodeada de gatos na sua velhi…” De repente se viu em frente a um espelho mental e enxergou a imagem que já era uma velha conhecida sua: a ‘guerreira’ estava entesando o arco ao contrário e apontando a seta para si própria, para o seu próprio coração. Pronto! Chegava ao lugar que era seu destino mais certo: o lugar da culpa que, claro, era sempre dela. Não era a primeira vez (e talvez não fosse a última) em que atribuía a si própria os fracassos de suas relações amorosas: se envolvia rápido demais (muito carente), escolhia os mais podres que podia (não merecia nada melhor), entrava de cabeça até sufocar a si mesma e ao cara (o medo de estar só a obrigava a agir assim, loucamente). Mas, chega. Não desta vez! “Pare já com isso, garota. Você não é perfeita, mas foi ele quem traiu. Não vê que a culpa não foi (toda) sua? Ele tornou a relação imunda com suas traições. Não foi você!
Havia algo de novo desta vez, uma certa consciência da necessidade de apontar o fracasso para outras direções. E a moça gostou dessa sensação, parecia diferente das tantas outras vezes em que a culpa crescia a ponto de mastigá-la e engulí-la até que se transformasse no excremento que ela sempre pensava que era. Resolveu mudar de estratégia: não atacaria apenas o meliante namorado traidor, mas atiraria flechas menores, porém, letais ao relacionamento com ele como um todo. E foi assim que partiu para as agressões de maneira mais genérica a essa infeliz relação recém-terminada. Haveria de aprender muitas lições com isso.
“Imunda. Indigna. Profana. Destruidora. Maldita”. Nada prestou nesse namoro, desde o início.” Pensando bem, ela se lembrou que a relação estava fadada ao fracasso desde que ficaram juntos pela primeira vez, quando foi de carona com ele para uma festa na casa de praia de uma amiga em comum. Foi divertido, beberam muito e acabaram dormindo juntos. Passou tão mal de enxaqueca e ressaca na manhã do dia seguinte que não se lembra de muita coisa além da dor. Deveria ter imaginado que o batismo de vômito que protagonizou no carro dele no caminho de volta pra casa não podia mesmo ser um sinal de prosperidade… “Relação dos infernos, começou mal, só podia terminar mal!” Lição número um: Nada de bebidas no primeiro encontro. Voltou aos xingamentos, mas quanto mais nomes feios ela atribuía à relação, mais sozinha e triste ficava. Isso também não estava ajudando… As lembranças do primeiro encontro receberam novas luzes e só agora ela pôde enxergar com clareza o que via enquanto se contorcia de enjôo e dor no banco de trás do carro no retorno para casa: Conversas alegres que não terminavam nunca com a amiga que também estava de carona. Riam muito, cantavam juntos a música do rádio, contavam coisas sobre si mesmos e se tocavam delicadamente… Sim, ele passava a mão nos cabelos dela e acariciava sua perna enquanto dirigia. Essa lembrança maldita não ficou só na mente, mas atingiu certeira o seu estômago explodindo em novo jato amargo que precisou ser expelido vocês sabem como. A confusão emocional adquiria novos contornos agora: tomava formas de um outro monstrinho que ela já conhecia: a auto-piedade. Como era possível terminar assim a vida de uma pessoa que se entregou de corpo e alma, com toda a sinceridade do mundo, ao que achou que seria o amor da sua vida? Começou então a se lembrar do quanto ela se esforçou para fazer dar certo, para que ele a amasse apaixonadamente. Lembrou dos jantares românticos, das lingeries, dos presentes surpreendentes, das mensagens carinhosas, do romance, das carícias… Não foi traída apenas por ele, mas também por sua amiga confidente. Estava cercada de pessoas más, que não respeitavam sua amizade e amor sinceros. Que horror, que tristeza sem fim…
Jamais pudera imaginar um final tão cruel para essa história de amor que ela estava construindo. Ao mesmo tempo parecia tão divina e tão mundana, tinha em sua essência uma mistura irresistível de fugacidade e eternidade… como uma relação que fora tão curta em sua dimensão temporal poderia fincar raízes tão eternas em sua alma? Ela não estava louca, não entrou sozinha nessa relação. Ela fez tudo certo, tudo como deveria ser. O vilão charmoso que a envenenou fazia isso com muitas outras garotas e, só agora ela conseguiu entender que a verdadeira verdade estava no fato dela ser uma ingênua inocente que acreditava no amor e na amizade das pessoas e que fora traída não apenas por ele, mas também por ela: a falsa amiga que pela frente era toda companheira e confidente e, pelas suas costas, a amante do seu namorado. Criatura perigosa. Ela sim era a cobra venenosa que se infiltrou em seu relacionamento. Sim, era ela, não ele, quem deveria receber a flecha certeira que acabaria com a sua existência e levaria junto com ela toda a dor, a desconfiança e incredulidade no amor. Sim, acabar com ela seria a solução. Foi ela quem o cegou, o enfeitiçou, o encantou. O alvo mudou de direção, ela deve morrer.
“Loira azeda, Barbie do mal, bruxa insensível. Falsa, hipócrita, egoísta, isso é o que ela é. Decerto ficaram juntos assim que me deixaram em casa naquele dia”. Foi a conclusão mais óbvia a que pôde chegar naquele momento. “Pessoa odiosa, como ela foi capaz de fazer isso comigo? Ela sabia que eu estava muito na dele, falamos sobre isso tantas vezes enquanto planejávamos nossa viagem”. Ela era mesmo uma cretina, certamente a pior amiga que alguém poderia ter. Foi ela que minou minha relação com ele! Num impulso quase instintivo, correu até aquela rede social onde todos estão para ali investigar o perfil dessa perversa e estúpida “amiga”. Partiu em busca de sinais de sua traição e atravessou sua linha do tempo atrás de pistas que pudessem se transformar em evidências para, enfim, torná-la a suspeita principal do crime que matou o seu namoro. Retrocedeu nos dias, semanas, meses… nem sinal de qualquer interação com ele. Nem amigos eram ali. Seus dotes como detetives não eram os melhores, mas insistiu neles investigando outros perfis: outras amigas em comum, a dona da casa de praia, talvez, já que era nossa amiga em comum. E, depois de invadir milhares de lugares, pessoas e hashtags sentiu-se cansada e vazia. Ficou se perguntando o por quê de não ter entrado no perfil dele, o traidor verdadeiro da história e concluiu que a verdade verdadeira mesmo era aquela que ela não queria encarar: teria sido bem mais fácil encontrar sinais, evidências e provas de que ele era quem não prestava no final das contas. Mais um a quem entregara o seu coração.
Masoquismo: “Desvio mental que consiste em sentir prazer com a dor”. Masoquista: “aquele que sente prazer com a dor”. Encontrou essa definição naquele dicionário velho que estava na estante, mas logo desistiu de usar essas palavras para se auto definir. Não gostava da dor, não tinha nenhum prazer nela. Mas volta e meia andava por caminhos que a levavam até lá. “Que labirinto insuportável. Não é possível que esse seja o meu destino!” A simples ideia de terminar seus dias como uma idosa isolada do mundo num quarto sujo e na companhia de 44 gatos serviu como uma dose de cafeína misturada com estimulantes de toda espécie injetada direto na veia e a fez saltar de um pulo com uma nova e empolgante sensação. “Essa não sou eu! Mazoquista o ******!” Entrou no banheiro, desta vez, não mais para expulsar líquidos pela boca e, sim, para tomar um banho restaurador. Por um longo período de tempo deixou cair sobre ela fortes jatos desse líquido quente capaz de lavar o corpo e a alma e se permitiu também deixar saírem dos seus olhos lágrimas mornas que fluíam sem fazer força e sem nenhuma obrigação: apenas fluíam de um jeito inédito e inesperadamente tranquilo. Ah, quanto prazer nesse ritual de lavagem… A espuma branca que descia de seus cabelos se juntava às lágrimas em seu rosto e à água quente que saía do chuveiro, tornando-se em uma nuvem molhada e mágica que escorria por todo o seu corpo exercendo seu incrível poder de fazer sumir pelo ralo toda aquela negatividade que há pouco deixava feias manchas em sua pele e em sua alma.
Num gesto consciente e gentil, desligou o chuveiro e respirou aliviada. Abriu os olhos, seus novos olhos, com os quais agora pretendia ver a vida. Esticou lentamente o braço direito e alcançou a toalha com a qual se cobriu e, continuando essa espécie de ritual de auto-conhecimento, secou uma por uma as gotas do seu banho de renovação. Passou pelo espelho e se viu ainda nua e, pela primeira vez, contemplou o seu ainda jovem corpo. Com essa atitude de contemplação, se achou linda, perfeita, atraente e gostosa. Não pôde evitar de rir quando se lembrou que, há menos de 24 horas atrás, se achava gorda, desengonçada e feia. Conseguiu listar os pontos fortes do seu corpo e foi até o guarda roupa. Escolheu uma blusa que valorizasse o seu decote, pegou aquela calça que ficava num canto esperando que ela emagrecesse “aqueles dois quilos”, mas que hoje entendeu que, na real, era a ideal para delinear suas pernas. Pegou seu sapato mais bonito e confortável (sim, conforto é uma séria prioridade a partir de agora), realçou a beleza do seu rosto com uma maquiagem que refletisse a pureza da sua alma mas que também mostrasse sua força: batom vermelho era indispensável. Voltou ao espelho e o que viu agora foi uma linda mulher renascida como a fênix e digna de amar e ser amada.
Olhou bem em seus próprios olhos, corrigiu sua postura e disse em alta voz para si mesma: “Você está vendo essa pessoa linda nesse espelho? Ela é você, a você de verdade. A você forte que fica negligenciada de vez em quando, que é empurrada pra baixo por sentimentos de derrota e que fica encolhida por um tempo, mas que sempre volta a subir. E volta mais poderosa e linda. Essa é você! Aquela que te chama de idiota, de burra, que diz que você faz tudo errado e que não merece o amor – aquela não é você de verdade. Ela é parte de você, mas não é a melhor parte. Também tem aquela que te faz pensar que a tristeza e a solidão são as marcas do seu destino, essa aí também não é a você dominante. Ela aparece de vez em quando e quer tomar o lugar do seu verdadeiro ser, mas não pode e nem vai. Ah, e sabe aquela outra que faz você se sentir a coitadinha sofredora, isenta de todas as culpas e vítima dos outros e das circunstâncias? Cuidado com ela, mas saiba que ela também não pode com a verdadeira você.”
Passou um bom tempo nesse necessário diálogo consigo mesma. Falou tanto e com tanto vigor que precisou de água mais uma vez: aquela filtrada e na temperatura certa para matar a sede de vida que estava experimentando. Alma e corpo lavados, boca e garganta molhadas: sentiu que estava pronta. Estava feliz e muito orgulhosa de si mesma, por sua capacidade de reerguer-se tão bem e tão rápido depois de mais uma decepção amorosa. Gostaria de ter gravado seu discurso, nunca fôra tão eloquente em toda a sua vida. Se foi capaz de convencer a si mesma a mulher forte e poderosa que ela é depois de ver estraçalhado o seu coração, quebrado em mil pedaços e jogado na sarjeta, seria capaz de ajudar outras mulheres a fazer o mesmo. Pensou que poderia ser útil nesse tempo de relações tão líquidas e frágeis… Teve a ideia de escrever um blog, criar um perfil nas redes sociais que despertasse o amor próprio das mulheres e a sororidade entre elas. Achou que seria legal escrever um livro, criar um canal de vídeos. Sim! Era tudo isso o que ela deveria fazer, espalhar pro mundo suas descobertas.
Quanto mais ela pensava nisso, mais cheia de energia ficava. Tratou de ligar o notebook e anotar suas ideias. Nossa, ela estava cheia delas! Começou a usar o teclado como uma metralhadora disparando letras, palavras e frases uma após a outra, sem pontuação, sem trégua, sem dó. Exorcizou na tela sentimentos, pensamentos e emoções que estavam guardadas desde sua infância, mas sem ordem cronológica, sem organização alguma e, muitas delas, totalmente sem sentido. Era simplesmente incrível o tanto de coisas que estavam guardadas dentro de si. De quantos fantasmas que ela nem imaginava que assombravam sua vida ela se livrou naquele exercício. Quantos medos injustificáveis puderam ser justificados naquele texto. Ela foi escrevendo por horas e horas sem nenhum esforço, sem nenhuma técnica, sem nem mesmo nenhuma pausa, nenhum cansaço. Tanto que, a impressão que sentia, é que em um determinado momento não era mais ela quem digitava loucamente tecla por tecla. A partir de um determinado instante as palavras saíam por conta própria dos seus dedos, sem passar por nenhum filtro, por qualquer tipo de elaboração ou planejamento. Elas iam sozinhas de dentro da moça para dentro da máquina. Com força e com pressa.
Rapidamente um longo texto se formou magicamente sozinho: em sua frente ela via páginas e páginas de um texto desconfigurado, desorganizado e complexo cheio de verdade e de potência capaz de explodir o mundo velho e dar vida a um novo mundo. “Explodir o mundo velho, criar um mundo novo”: foi exatamente o que ela pensou por último e, nessa hora, caiu exausta no encosto da cadeira onde esteve digitando aparentemente por uma década. Naquele momento ela sentiu uma dor que se espalhava pelo seu pescoço, coluna, braços e mãos. Era evidente que se sentiria assim depois de tanto tempo torturando um teclado. Mas era “uma dor diferente, inédita, forte e potente como àquela de dar à luz”, pensou ela mesmo nunca tendo parido um filho sequer. Mas ficou claro como o dia que aquele momento catártico representava exatamente isso: ela acabara de parir um mundo novo que era só dela. Acabara de trazer uma nova vida – a dela mesma – para um velho mundo.
Sentiu-se, por alguns momentos, tão indefesa diante dessa nova vida que saiu de dentro dela quanto um bebê recém-nascido sai de dentro da sua mãe biológica. Mas logo se lembrou que os bebês são gerados por outras pessoas e obrigados a vir ao mundo sem seu consentimento e, uau, isso é mesmo assustador. Só que não foi assim com ela: a vida que trouxe à luz por meio dessas palavras foi gerada por ela mesma, embora tivesse a participação de outras personagens do mundo velho que conheceu antes desse dia. Foram suas experiências, suas lembranças, seus medos e sua coragem, suas vitórias e suas derrotas… O que nasceu foi uma soma de tudo o que ela conhecia, sabia e havia de alguma forma vivenciado. Essa moça recém-nascida era feita disso tudo e, inclusive, das várias outras ‘moças’ que a compunham como pessoa e que ela cultivava dentro de si instintivamente. Ficou claro de quantas pessoas, frases, imagens, cheiros e sabores, coisas concretas e imaginadas alguém pode ser formado, e ela entendia agora que aquilo tudo faz parte de quem ela é, mas que isoladamente, nada daquilo a definia. Sentiu, finalmente, que não dependia de ninguém para sobreviver e para ser forte. Ficou tão impressionada com o poder desse insight que chegou a sentir gratidão pelo miserável traidor… Percebeu que a moça que nasceu depois desse processo dolorido não depende mais de “mamães’, “papais”, “babás”, “professores”, ou coisas do tipo para crescer, se alimentar, andar e viver.
Teve a certeza absoluta de que essa fase de dependência ou co-dependência era coisa do passado e que, definitivamente, nada do que experimentou em seus relacionamentos ‘amorosos’ anteriores poderia ser chamado de amor. Aquela explosão de palavras e sentimentos amontoados naquelas páginas parecia a ser a revelação mais próxima do amor, mais do que tudo o que já tinha experimentado antes. Depois de retomar o fôlego, decidiu passar os olhos no texto buscando, quem sabe, um entendimento mais racional do que toda aquela história significava. Assim como saíram de seus dedos espontaneamente para a tela, as palavras agora pulavam para os seus olhos com a mesma força e naturalidade. Em meio àquelas linhas cheias de erros de digitação e de ortografia, uma linha comum começou a ser traçada e a fazer muito sentido. Encontrou ali todas as pessoas realmente importantes na sua vida: sua família, seus amigos, colegas de trabalho, conhecidos. Gente de quem ela gostava e gente de quem sentia ódio, gente que que lhe fez bem e gente que lhe fez mal, gente que a ajudou e que a atrapalhou. Gente que a fez sorrir e gente que a fez chorar. E lugares, muitos lugares conhecidos: casas, escolas, praias, ruas e cidades. Situações diferentes, confortáveis e desconfortáveis, felizes e tristes. Tanta coisa junta ali, tantas conexões e experiências…
Um universo inteiro despejado naquela máquina. O universo dela, que saiu descontroladamente de dentro daquela moça desencantada com o amor. Uma história mal escrita e ainda não terminada, que tinha começo mas ainda não tinha fim e da qual era impossível compreender cada detalhe ou mesmo traçar um rumo definido a partir dela. Muita coisa misturada formando um quadro complexo e muitas vezes confuso e dolorido mas que, olhando agora com esses novos olhos, a moça recém-nascida encontrou sentido e se sentiu disposta a continuar construindo essa história. Só que, a partir de agora, deixando fluir de dentro pra fora, recebendo graciosamente e filtrando atentamente cada presente que esse ‘mundo velho’ lhe oferecesse.
Vigorosamente, levantou-se da cadeira e começou a andar pela casa, em direção à porta da rua, decidida a viver sua nova história. Ao passar pelo espelho, levou um susto enorme que a fez parar e deixar cair a bolsa que estava segurando. Incrédula, foi se aproximando devagar e a imagem que viu à sua frente era exatamente a peça que faltava para dar sentido a tudo o que havia acontecido. Parou novamente em atitude de contemplação e, mais uma vez, ela estava lá: a mulher linda, forte, perfeita e gostosa. Algumas coisas, porém, estavam diferentes: em seus cabelos havia alguns fios em um tom acinzentado simplesmente adorável, seus olhos permaneciam vivos em seu rosto, mas agora brilhavam uma sabedoria que não existia naquele primeiro encontro consigo mesma ali, naquele mesmo espelho. A pele continuava macia, embora não tão firme e brilhante. Ali parada em frente ao espelho, ficou pensando na quantidade enorme de vezes em que precisou daqueles banhos restauradores onde a água se misturava às lágrimas e fazia sumir pelo ralo cada uma das manchas de tristeza e culpa que se acumulavam com frequência. Visualizou tantas vezes em que contemplou seu corpo nu diante do espelho e acompanhou cada mudança sem nunca deixar de identificar seus pontos fortes e de ressaltá-los na maneira com que se vestia. Compreendeu que sua própria vida era a tela na qual escrevia sua história da maneira mais honesta que podia, sem esconder sentimentos ou desejos, assumindo seus erros e aprendendo com eles. Por fim, viu no espelho uma vencedora: uma rainha que, inteligentemente, desfilou pelo tabuleiro de xadrez e ganhou a partida.
“Xeque-Mate”, disse em voz alta. Retocou o batom, deu aquela esticadinha no vestido, pegou a bolsa caída no chão e saiu com passos firmes e decididos. Pronta para viver novas experiências, aberta às surpresas que a vida pudesse trazer. Plena e poderosa, saiu de casa na melhor companhia possível: ela mesma.
Zeradas as expectativas que antes lhe faziam mal, vivia agora confiando no poder de seu julgamento e no acerto das escolhas que aprendeu a fazer. Tomava tranquilamente um cappuccino em sua confeitaria preferida, numa linda e fria tarde de sábado, quando a mesa estremeceu de leve e um zunido discreto chamou sua atenção. Pegou o celular e conferiu o “match” de um certo aplicativo. Com a mesma tranquilidade, checou as possibilidades e, com um leve sorriso no canto esquerdo de sua boca vermelha, deixou escapar em voz alta um pequeno comentário:
“Ah, eu sabia…”